Ediloy
A. C. Ferraro
São Paulo / SP
A dúvida de um segredo
Lá vinha o Valdevino, coxo, arrastando sua perna esquerda,
como se puxasse um fardo, atormentado em claudicantes passos.
Com o tempo acostumara-se com a deformidade, não congênita,
adquirida por uma fatalidade, da qual pagaria para sofrer uma
amnésia e esquecê-la para sempre.
Com o andar manco já se habituara, afinal a capacidade
humana em se adaptar às situações é
surpreendente. Parecia que sempre teve aquela anomalia, não
se pejava de seu andar irregular, embora se sentisse cansado.
Seu caminhar lento, o fazia carregar a cruz, não visível,
mas presente em todos os momentos, remoendo as lembranças,
pesadelos pessoais à luz do dia.
Antes fosse uma cicatriz, possível de ser camuflada em
qualquer parte do corpo, onde as vestes cobrissem e não
despertassem atenções. Talvez até convivesse
melhor com aquilo, afinal, pensava, não há quem
não tenha suas marcas, ocultas ou aparentes, a cruciarem
os seus dias.
Assim que a tragédia ocorreu em seu torrão natal,
voltando à vida normal, pediu transferência de local
de trabalho, mudou de cidade, e foi embora. Então, apenas
os parentes, que vinham de vez em quando, já que ele evitava
retornar, conheciam o real do acontecido. Guardavam silêncio
para não melindrá-lo com recordações
infelizes. Para os demais, fora vítima de um acidente de
trânsito, não se recordava dos detalhes, pois apagara,
só despertando com os primeiros socorros. Finalizava a
prosa enxerida, mudava de estação, alterando as
atenções. Inadvertidamente, somos atrevidos com
as chagas alheias.
Do que já vivemos, enterramos o que não interessa,
mas as marcas, naquele caso, eram muito evidentes, físicas,
visíveis. Como a relembrá-lo permanentemente, não
lhe dando tréguas. Preferia não rever os que conhecera
de infância e adolescência, de tudo sabiam, o enojava
imaginar a lembrança involuntária que todos teriam
ao vê-lo. Sua atitude passada, torpe e injustificável,
o envergonhava. A ele bastava a inclemência de ser o seu
próprio juiz.
Era trauma íntimo, onde a outros figuraria como relés
curiosidade, levando-se em conta de que os dramas alheios, geralmente
causam comentários maledicentes, julgamentos levianos.
Contudo, driblando as adversidades dos olhares atrevidos, ao ficar
à sós as cenas retornavam como num filme repetido
inúmeras vezes. Evitava assistir na televisão cenas
de amor, a remetê-lo em saudades e mágoas de pura
descrença, ou pior, que focalizassem brigas e tiros. Experimentava
suores a empapá-lo inteiro. O trauma era latente.
Rapaz criado em pequena cidade, cedo começara a namorar
a então noiva, e tudo parecia perfeito. Concursado em serviço
público, tinha estabilidade no emprego. Era só questão
de alguns acertos financeiros para poderem se casar, como pretendiam.
Conheciam-se desde crianças, eram feitos um para o outro,
no dizer de todos, inclusive no entender dele próprio.
Não percebera nenhuma mudança de comportamento nela,
parecia feliz com o casamento próximo, o relacionamento
corria normal. A noiva, para concluir um curso, viajava todas
as noites para uma cidade próxima, maior e com melhores
recursos. Alguns jovens da localidade faziam o mesmo percurso,
buscando a conclusão de seus estudos.
Alegando que as aulas as vezes se estendiam até tarde,
na outra cidade, ficava em casa de uma colega, retornando cedo,
no dia seguinte. Isso ocorria em dois dias da semana, habituara-se
com isso.
Amâncio era um dos amigos mais próximos, conheciam-se
desde a infância, entre eles não havia segredos.
Ele próprio empreendia viagens para fins de estudos noturnos.
E dele veio uma suspeita que mudaria o rumo de sua vida...
Com muito jeito, escolhendo as palavras visando amenizar a notícia,
contou-lhe que a sua noiva era vista com freqüência
com um dos professores, e que seria interessante que ele, vez
ou outra, a acompanhasse, pretextando qualquer coisa.
Na verdade, queria que ele mesmo visse, não gostava daquela
posição de delator, mas, também, não
admitiria a possibilidade de vê-lo no papel de enganado.
Poderia ser ou não, melhor que ele averiguasse. Achou por
bem que o próprio tirasse suas conclusões, fazendo
seu juízo. Achava que agindo assim estava sendo correto
com a amizade de tantos anos. Levantada a questão, lavava
as suas mãos.
A princípio sentiu-se incomodado com a insinuação
no ar, ofendera-se calado pela honra da amada colocada sob suspeitas.
Não poderia dar ouvidos à maldade alheia, mesmo
que viesse de alguém de confiança como Amâncio.
Engoliu a seco, disfarçou para não aparentar melindres.
Plantada estava, contudo, a desconfiança.
Não confirmou com o amigo que seguiria seu conselho, aliás,
tentou aparentar tranqüilidade, em respeito à noiva
e a si mesmo. Mas eclodia em seu íntimo, como um vulcão
adormecido, em lavas incandescentes, o veneno inoculado nas próprias
veias.
A partir de então, já não era o mesmo, pacato
e bem humorado como todos o conheciam. Mantinha-se silencioso,
como encolhido em si mesmo. A custo mantinha sua postura frente
à noiva, tentando aparentar naturalidade. A olhava atento
nos olhos, a conhecia e não lhe percebia dissimulação.
Suas noites, todavia, não eram mais de sono solto, confortante.
Angustiava-se amiúde com a possibilidade de ser traído.
Resolveu que a seguiria. Iria sozinho, nem mesmo o amigo confidente
tomaria conhecimento. Precisava ver com os próprios olhos,
porém não queria colocar a lealdade da futura esposa
em dúvida para ninguém. Acontecesse o que fosse
não era dado a escândalos.
Nos dias em que pernoitava na outra cidade, ele a seguiu. Manteve-se
à distância, nos arredores da escola, observando
o movimento dos estudantes, entrando e saindo. Ao término
das aulas a viu em companhia do tal professor, conversavam normalmente,
não demonstrando maiores intimidades, apenas seguiam na
mesma direção, a do carro dele, pois ela não
dirigia.
Ao vê-la entrar no veículo, como se fizesse com habitualidade,
impacientou-se, controlando-se para não se declarar aos
dois. Voltaria em outras oportunidades, precisava ter mais elementos
para não ser leviano e precipitado. Afinal, não
contava que ela aceitasse caronas com ninguém, principalmente
com um homem, e àquelas horas.
Seu estado psíquico era de um desvairado, não atinava
com seus botões. Ora a entendia, tudo tratava-se de um
cordialidade, apenas um obséquio de alguém favorecendo
a outra pessoa, para, no mesmo instante, entrar em verdadeira
confusão mental, imaginando o pior. A traição,
então, se delineava medonha aos seus olhos.
Várias foram as incursões dele, sorrateiramente,
a vigiar o par. De pessoa afável e cortês, transfigurou-se
açoitado pelas dúvidas, ao ponto de adquirir uma
arma de fogo, comprada de um estranho.
Das noites insones que passava a se angustiar com suas apreensões,
começou a esboçar uma vindita, exigiria de ambos
satisfações, sob a mira do revólver, fazendo
ver que ele não era o ingênuo que poderia aparentar.
Amargurado pelas desconfianças, inábil com a arma,
postou-se frente à frente com o casal, surgindo inesperado
das sombras, em atitude de desespero e ameaçador.
Da noiva, surpresa e assustada, negando qualquer envolvimento,
rogando bom senso, ouviu-se um grito e um desmaio.
Apenas um disparo foi ouvido, contra a própria perna. Inexperiente
com o artefato mortífero, atrapalhou-se com o grito de
espanto da moça, tempo que teve o professor, em defesa,
atracado com ele para desarmá-lo, ferindo-se com a própria
arma.
Foi socorrido pelo suposto amante, que o deixou em um pronto socorro
para as medidas de urgência no sangramento. Alegou que o
encontrara no caminho, perdendo sangue.
Não registrou a ocorrência, seria uma confissão,
tentativa de homicídio, além de temer falatórios
e não ter porte de arma. No íntimo agradecia não
ter acertado ninguém, além de si mesmo.
Nunca mais procurou por ela, tampouco soube se realmente eram
amantes. As palavras dela clamando inocência não
surtiram efeito. As evidências, em sua alucinação,
falavam mais alto. Preferia acreditar que agira em desatino pela
traição, antes instigado pela mente insana, que
por provas conclusivas.
Mudou-se da cidade, envergonhado com sua sina, herdando a indesejável
deformidade física.
A crença que fora traído, de si para si, atenuava
o ato tresloucado, não o justificava. A hipótese
da inocência dela agigantava seu desatino, doía-lhe
muito mais, a teria perdido inutilmente. Mas, no íntimo,
a dúvida persistia incômoda.
Era visto caminhando lento, com seu segredo, sua dúvida,
e a perna arrastada, imerso em seu inferno pessoal...
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