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Jorge Braga da Silva
Peruíbe / SP

 

A melancia mortal

 

Foi só no terceiro dia que Deus criou a melancia. E viu Deus que a melancia era boa e disse: "Crescei e multiplicai-vos". E a melancia, muito mais obediente do que certos humanos, que só apareceriam três dias depois, tratou de se reproduzir e se espalhar pelo mundo todo.
Não obstante seus empenhados esforços, somente na época da escravidão é que a melancia, trazida da África pelos negros escravizados, fincou literalmente suas raízes em solos brasileiros. Em torno de 5700 anos a melancia levou para, diligentemente cumprindo as ordens divinas, chegar ao nosso prodigioso país. E em aqui chegando foi ficando e se espalhando.

E meu tio Zevaldo viu a melancia e a comeu. E também viu que a melancia era boa e durante toda sua vida, meu tio Zevaldo comeu e gostou de melancia. Mas não era só de melancia que ele gostava. Quando ainda adolescente, passou a apreciar também uma branquinha, água que passarinho não bebe. Cachaça mesmo, sem eufemismos.
Em 1960, no Pontal do Paranapanema, ele trabalhava na roça, em uma fazenda onde meus pais também eram arrendatários de um pedaço de terra no qual plantavam feijão, algodão, mandioca e... melancias. Mas a melancia daquela época nada tem a ver com a história do meu tio. É só para constar que a melancia não se esquecera da ordem de Deus e já tinha chegado até lá, naquele distante canto do mundo, o extremo oeste do estado de São Paulo.

A vida de arrendatário não era fácil. O trabalho era duro, os custos das sementes e dos implementos agrícolas eram elevadíssimos. A cidade era longe e ninguém tinha dinheiro para diversão. Portanto, no pouco tempo de lazer disponível, os peões ouviam rádio e bebiam cachaça nos terreiros em torno dos galpões onde dormiam. Numa dessas ocasiões, num dia frio de julho, meu tio, desesperado por um trago, procurou e não achou uma só garrafa da marafa. Em lugar nenhum ele achou. E nenhum outro peão tinha cachaça, nem meu pai. Então meu tio misturou água com álcool num copo e, ali mesmo, matou sua vontade.
Mas serei justo. Meu tio, apesar de muito chegado a uma aguardente, jamais foi homem preguiçoso, desonesto, violento ou covarde. Sempre foi muito alegre, tranquilo e muito querido por todos. Bebia sua pinguinha, contava seus "causos", ria muito e depois ia dormir sossegado.

Não vendo futuro no Pontal, ele foi embora para São Paulo onde casou-se e foi morar em Perus. Por muitos anos trabalhou na companhia de vidros Santa Maria e a maior parte do tempo no período noturno, o mais evitado pelos trabalhadores por ser muito cansativo e insalubre. Mas para meu tio Zevaldo não tinha tempo ruim. Ele encarava todo serviço que vinha. “Aqui tem café no bule”, ele costumava dizer. E por isso foi funcionário muito apreciado pela empresa por mais de vinte e cinco anos.

O barraco onde ele morava em Perus era pequeno, todo de madeira e a parede de trás ficava encostada num morrete até mais ou menos um metro de altura. Algumas tábuas dessa parede, não suportando a pressão, cederam um pouco, de modo que havia terra entrando para o interior da moradia. A esposa dele fazia o possível para manter a limpeza, mas era tudo precário naquele barraco. Por muitos anos, meu tio se recusou a reformar, mesmo com os insistentes pedidos de sua mulher. Quando eu o visitava, ela aproveitava e fazia suas lamentações e meu tio sorria e justificava-se dizendo:
- Não é pobrema de dinheiro não. Cê veja só onde moro, aqui nessa favela. Se eu ostento uma casa bonita, cheia de luxo, bandido logo cresce o zóio e vem aqui roubar, matar. Ontossi, muié, deixa assim memo. Nóis tem um teiado que não entra nem chuva nem sol, então tá bão demais!

Em suas folgas do serviço, Zevaldo não saia de casa. Ficava só tomando pinga e fumando. Uma ou duas garrafas e um maço de cigarros por dia. Mas na véspera de ir trabalhar, nunca bebia. Também nunca bebia em bares, só em casa. A mulher reclamava, aconselhava, mas os anos iam passando e Zevaldo não mudava.
Um dia em 1993, meu tio acordou e não se sentiu bem. Estranhou porque tinha uma saúde de ferro. Não sabia o que era uma dor de cabeça, mesmo abusando do álcool continuamente, desde quando era jovem. Depois melhorou do mal estar e foi para o trabalho. Dois ou três dias depois novamente sentiu-se mal, teve fortes dores nas costas. Dessa vez foi parar no hospital. Alguns dias depois, a terrível notícia. Era câncer de pulmão. E o tratamento com quimioterapia começou. O organismo de meu tio não se recuperou, não respondeu bem ao tratamento e ele faleceu.

Antes de ele morrer fui visitá-lo no hospital. Ele estava numa enfermaria coletiva. Tinha gente agonizando numa cama ao lado. Ele, cadavérico, estendido sobre a cama - menos branca do que ele - recebeu-me com um sorriso sem graça. A esposa ao lado dele. Conversamos. Ele disse tristemente:
- Eu não tenho medo de morrer, só o que me dói é nunca ter reformado o barraco. Você merecia, eu podia ter feito, mas não fiz. – E olhou sua esposa como se a pedir perdão.
- Ora, Zevaldo, esqueça isto. Você vai sarar, vai voltar e nós vamos construir uma bela casa no lugar do barraco. Sossegue! – Ela procura consolá-lo.
-É... Não sei não – Ele disse melancólico.
- Não desanima não, tio, você vai ficar bom, só precisa parar com o cigarro e a pinga, isto que está lhe fazendo mal.
- Que nada! Não é pinga nem cigarro, não.
E Zevaldo nos conta a sua teoria sobre a gênese da sua doença. Ele tinha sua própria explicação sobre a causa. E não era a cachaça da qual havia abusado em toda sua vida. Também não era o maço de cigarros que fumou todos os dias. E aqui entra em cena, de novo, a melancia! Sim, a melancia. A culpa era da melancia, para meu tio. Segundo ele, foi a melancia que ele comeu no dia do aparecimento das dores nas costas, que lhe causou a doença, pois logo em seguida sentiu-se mal pela primeira vez. Sentiu aquela dor aguda nas costas e começou a passar mal.
- Foi a melancia – Ele disse convicto – Aquela maldita melancia assassina!
Essa foi a última coisa que eu ouvi do meu saudoso tio Zevaldo.


 

   
Publicado no livro "Seleção de Contos Premiados" - Edição Especial - Junho de 2014