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Sergio Tavares
Maceió / AL

 

De olhos vendados

 

Enquanto acariciava seu cachorro, um vira-latas chamado Sadã, Tchekovinsk pensava a respeito do quanto se iludiu com a amizade de certas pessoas e se decepcionou, e, agora, não sabia porque, mas ao acariciar o cão lembrou-se de Podresk.
Tchekovinsk era um sentimental, que sempre gostou mais de ouvir do que falar, e quando conhecia alguém, procurava dar toda a atenção possível e, assim ocorreu quando conheceu Podresk, na época em que havia sido transferido para La Bonequeira, um dos piores lugares para se trabalhar na força policial. E, na verdade, agora, já passados mais de sete anos, podia pensar racionalmente sobre sua antiga amizade.
Tornaram-se amigos ao despacharem assuntos rotineiros, e diariamente se reuniam ao final do expediente para conversar sobre seus assuntos preferidos, e dentre eles, a literatura era uma paixão em comum, sendo que ambos apreciavam o mestre Machado de Assis, que geralmente era o tema das conversas vespertinas.
Podresk fazia questão de discutir sobre a suposta traição de Capitu ao Bentinho, sobre as teorias de Quincas Borba, sobre as poesias e os contos Machadianos, sobre a fabulosa obra criada pelo escritor negro, nascido no antigo Morro do Livramento, no Rio de Janeiro, filho de uma lavadeira e um pintor de paredes, bem como, admiravam a luta do bruxo do Cosme Velho para ultrapassar tantas barreiras em um país tão preconceituoso.
Podresk gostava também de tratar sobre religião, pois ambos eram espíritas e muitas eram as passagens bíblicas analisadas à luz do espiritismo, especialmente os ensinamentos morais trazidos por Jesus. Falavam de Alan Kardec, de Chico Xavier e a importância de sua obra, e sobre o espírito de luz André Luiz, amavam as histórias que falavam sobre Paulo de Tarso, e, em alguns momentos, Podresk disse acreditar que ele e Tchekovinsk eram espiritos já conhecidos de vidas passadas.
Ele dizia que as coincidências entre eles eram muitas nesse sentido, e de vez em quando se surpreendia com um fato novo, como certa vez em que tiraram uma foto juntos e Podresk, chamou a atenção de Tchekovinsk, sobre a semelhança física de ambos na fotografia. Estavam lado a lado e, tinham exatamente a mesma altura, tanto em relação à altura dos cintos, dos ombros, e topo da cabeça – com o topete virado para o mesmo lado, - e esta aparência física, segundo ele dizia, era surpreendente, apesar da diferença de idade entre eles de mais de dez anos.
Podresk, nessa época, estava em um cargo de chefia, e não se cansava de expressar o quanto gostava e confiava em seu subordinado Tchekovinsk, e por esse motivo o queria trabalhando ao seu lado por muitos e muitos anos enquanto estivesse na ativa.
Entretanto, Tchekovinsk, nunca escondeu de seu amigo, o seu desejo de voltar para sua antiga Unidade policial - e este prometeu ajudá-lo,- pois queria voltar a trabalhar em ações operativas, diferentes das que vinha desempenhando em La Bonequeira. Sonhava em vestir novamente a sua roupa camuflada, colocar uma mochila nas costas, um fuzil a tiracolo e sair para uma nova missão toda semana. Assim, na primeira oportunidade que teve, conseguiu ser transferido, mas com a promessa de retornar assim que Podresk precisasse, e apesar da distância, a amizade se fortaleceu mais do que podiam imaginar.
Durante esse período, Tchekovinsk, foi para o Haiti, e lá vivenciou uma grande experiência, participando de ações humanitárias da força de paz da ONU, em prol daquele povo tão sofrido, e posteriormente, serviu em uma nova Base onde desempenhou atividades operativas como sempre desejou.
Tchekovinsk, precisava dessa distância para pensar na vida, e respirar ares diferentes, pois estava passando pela separação de sua segunda mulher, tendo vivido um casamento tumultuado. Tinha amado e sido amado, e isso ele sabia, mas havia algo com ele que o atraía novamente para a solidão... Não entendia o que acontecia, mas tinha certeza de que não conseguia aguentar uma rotina por muito tempo. A rotina o destruia lentamente e sufocava-o, consumindo suas forças, e martirizando-o a ponto de acabar com a sua motivação.
Certo dia, Podresk ligou chamando seu amigo de volta para ser seu assistente, e cuidar de sua agenda de trabalho, ajudá-lo em seus compromissos, pois ele havia sido promovido a Oficial General e, como Tchekovinsk se sentia na obrigação de aceitar o convite, assim o fez na hora, e lá foi ele, viver a rotina sufocante do amigo.
Entretanto, dentro de poucos meses, para espanto de Tchekovinsk, a amizade se desgastou e ruiu como um castelo de cartas, e sem que pudesse entender o motivo, as conversas de outrora se emudeceram, e os abraços apertados se desataram, dando lugar ao silêncio e a mudez dos gestos e ações robóticas, e nada ou quase nada lembrava mais a amizade sincera que existia entre eles.
Tudo por conta de um mal entendido, um pedido feito por Tchekovinsk para ajudar sua mãe doente, uma falta de compreensão de Podresk que provavelmente se achou menos importante do que uma velha senhora cega, e imóvel sobre uma cama de hospital - conforme pensava Tchekovinsk, - pois não havia outra explicação para o que aconteceu.
Na primeira oportunidade, Podresk, exerceu seu poder de chefia e transferiu-o para outro Quartel sem explicações, sem uma palavra, de forma fria e calculista, deixando-o extremamente decepcionado, e mais uma vez na sua vida sentiu-se usado e traído por um amigo que demonstrava ser tão diferente, especialmente quando falavam de literatura, de religião e nas semelhanças entre eles.
Ao ouvir o latido do cão, Tchekovinsk esqueceu de Podresk, e retornou das paragens por onde viajara em seus pensamentos furtivos e viu que o pequeno Sadã ainda estava ao seu lado, latindo como se implorasse por sua amizade, mas nesse amigo ele podia confiar de olhos vendados, porque ele era sincero e nunca trairia sua confiança, incondicionalmente, por nada nessa vida.


   
Publicado no livro "Seleção de Contos Premiados" - Edição Especial - Junho de 2014