Helio
Sena
Massapê / CE
Guarda-chuva III
Aqui em casa, está sendo uma barra aceitar a morte de
Leo. Pra nós, ele era como um membro da família.
Anteontem mesmo, domingo, ele esteve aqui em casa, estudando Matemática
comigo. Saiu daqui por volta das 8:20. Chovia forte, e minha mãe
ainda insistiu pra ele dormir com a gente, mas ele disse que não
podia. “O Rico está me esperando, sabe como é...”
Rico é o gato dele. É uma gracinha, apesar de ter
uma mania pra lá de esquisita. Morre de medo de guarda-chuva
preto aberto. É ver um e logo dá no pé. Uma
vez eu falei pro Leo que talvez o amiguinho dele tivesse medo
de morcegos, e achasse que guarda-chuva fosse um morcegão.
Não sei de onde tirei essa ideia, mas ela estava completamente
equivocada. O Leo me contou que Rico até brincava com os
morcegos no quintal, de tardinha. Eu mesma pude ver isso, numa
das vezes que fui à casa de Leo pra estudar, ver vídeo,
conversar. Os vizinhos dele pensavam que a gente namorava. Mas
não, éramos apenas amigos. Bons amigos, apesar de
nos conhecermos há bem pouco tempo – lá da
faculdade.
O Leo era uma pessoa incrível. Contávamos tudo um
pro outro. Ou quase tudo... Eu desconfiava que ele fosse gay,
mas nunca tive coragem de perguntar isso a ele. Teve uma vez,
uma única vez, que ele me perguntou se eu tinha coragem
de ficar com mulher e eu disse que não. E revidei a pergunta:
“E você, Leo, teria coragem de ficar com um homem?”
Ele sorriu um tanto sem graça e disse: “Não...”
Eu até brinquei: “Não ficaria... ou não
sabe se não ficaria?” Ele me deu um tapinha nas costas.
“Claro que não, Vera!”, disse ele. E completou:
“Mas nada contra, viu, amiga?” Sorrimos juntos, e
mudamos de assunto. E nunca mais voltamos àquela conversa...
Domingo à noite, quando Leo estava de saída, ele
me olhou de um jeito estranho, que não consigo explicar.
Não sei por que tive essa impressão. Talvez tenha
sido um presságio, sei lá... Acho que Leo notou
que eu havia percebido alguma coisa, pois tratou logo de abrir
o guarda-chuva que eu lhe emprestara, disse bye e mergulhou de
vez no aguaceiro pra pegar a condução. Esperei que
ele me ligasse quando chegasse em casa, mas o danado não
ligou. Decerto estava ocupado demais colocando leitinho e biscoitinho
pro Riquinho dele...
E agora meu amigo está morto! É duro acreditar que
Leo se matou, logo ele que, apesar das dores, das perdas na vida,
tinha um dos sorrisos mais luminosos que já conheci. Mas
as coisas são assim mesmo, não é? Ninguém
sabe o que de fato se passa na cabeça das outras pessoas,
mesmo aquelas mais próximas de você...
Eu soube do acontecido só agora de manhã, depois
que liguei pra vizinha perguntando se ela sabia do Leo, pois desde
a noite anterior que tentava ligar pra ele pra saber por que ele
perdera a prova de Matemática, e ele não atendia.
A vizinha disse: “Vera, minha filha, aconteceu uma tragédia!
O Leo se enforcou. De manhã cedo eu fui lá deixar
um pedaço de bolo pra ele, chamei, chamei e nada. Vi que
a porta estava só encostada, empurrei e foi aí que
avistei o Leo pendurado na corda. Foi horrível, minha filha,
foi horrível!”, terminou a velhinha, resvalando no
choro. Eu também comecei a chorar, e, quando consegui me
controlar, perguntei se a tia do Leo já sabia (a tal tia
morava na Zona Sul e era a única família do Leo,
mas, estranhamente, nunca cheguei a esbarrar com ela...)
– A dona Edite? Está sabendo, sim. Eu liguei e ela
já está vindo pra cá!, respondeu dona Aparecida.
Depois disso, ainda liguei mais duas ou três vezes pra ela.
A pobrezinha, como eu, está muito abalada. Pra ela, o Leo
era um filho. “O menino que eu não tive!”,
como ela própria dizia, coitada...
...
É quase meio-dia e estou saindo de casa com meus pais.
A gente está indo pro velório, na casa de dona Aparecida.
Estou muito confusa, não sei o que dizer de tudo isso!
Com um entalo na garganta, penso na tia de Leo – essa misteriosa
mulher que nunca vi...
Depois penso em Rico, o gato, e então pergunto pro meu
Pai se dá pra dirigir mais rápido. Pai me devolve
um sorriso compreensivo e acelera, ao mesmo tempo em que Mamãe
me abraça, amparando minhas lágrimas, que recomeçam
a cair...
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