Eber dos Santos Chaves
Vitória da Conquista / BA
O quarto do medo
As luzes já estão apagadas. Estou sozinho, deitado
em minha cama a espera do sono para recuperar-me de um dia cansativo
e entediante. É engraçado como as coisas mudam com
o passar dos anos. Pergunto-me por que não tenho mais medo
do escuro, fantasmas, demônios. A vida adulta me tirou qualquer
tipo de fantasia. Será que minhas experiências sobrenaturais
da infância e adolescência foram reprimidas em algum
lugar obscuro do meu inconsciente? Ou será que o ceticismo
foi minha válvula de escape para os dissabores da vida?
O que sei é aquelas experiências eram bem reais e
horripilantes para mim.
Agora meus pensamentos se voltam para quando era garoto. As imagens
da casa dos meus avos paternos passeiam pela minha mente, e recordo-me
de um acontecimento que me fez evitar a qualquer custo um certo
cômodo daquela casa, principalmente após o entardecer.
Este é um relato sincero sobre uma noite que passei num
dos quartos da casa. Não pensem que esse era um quarto
qualquer, ou que era apenas eu que o achava assustador, sobrenatural.
Sempre gostava de estar na casa dos meus avós, não
havia um só dia em que lá não estivesse para
brincar com o meu primo Abraão, ouvir as histórias
contadas por tia Darci, apreciar as mais belas melodias de violão
tocadas pelo tio Natanael, acariciar algum dos felinos da tia
Judite, prosar com tio Aurélio e compartilhar da sabedoria
de minha avó dona Zulmira e de meu avô seu Fileno.
Estar na casa durante o dia me trazia uma sensação
de felicidade, mas à noite isso tudo mudava, principalmente
quando era mais tarde, depois que meus avós e minhas tias
se recolhiam aos seus aposentos e eu ficava sozinho com meu primo
ou com algum outro amigo. Havia um lugar da casa em especial que
me deixava aterrorizado só pelo fato ter que passar em
frente quando estava sozinho à noite.
Na verdade, a casa toda era assustadora ao cair da noite. Era
uma casa antiga, mas bem conservada. Foi construída no
fim do século 19 e, em 1927, passou por uma grande reforma
feita pelo meu tio-avô Pedro Chaves, político e figura
de grande prestígio na sociedade itaquarense da época.
Durante as décadas de 1930, 1940 e 1950, a casa recebeu
muitos visitantes ilustres: governadores e outros políticos
influentes, arcebispos e artistas.
Na entrada ficava o rol, e havia uma porta dupla que deveria medir
aproximadamente uns três metros de altura, mesma altura
de todas as outras portas da casa. O primeiro cômodo era
uma sala com duas janelas com vitrais que davam para o rol. Uma
porta no lado direito dessa sala dava acesso ao salão,
esse era o cômodo mais requintado da casa: janelas com vitrais
que continham desenhos de santos e no teto havia uma linda pintura
de anjos entre nuvens – O rol, a primeira sala e o salão
tinham o piso de ladrilhos vindos de Portugal. Após a primeira
sala, um longo corredor que passava pelos quatro quartos da casa
e terminava na sala de jantar. O quarto que me dava calafrios
ao passar por perto à noite ficava no fim desse corredor,
do lado esquerdo. Havia também uma outra entrada para o
quarto pela copa, próxima ao banheiro e de frente a entrada
da cozinha. A casa era enorme e havia ainda o pátio com
uma varanda com acesso tanto pela sala de jantar quanto pela cozinha.
A varanda de madeira era suspensa devido ao desnível do
terreno na qual estava sobreposta a casa e tinha vista para o
enorme quintal – cheio de grandes árvores –
que ficava bem abaixo do nível da casa. O acesso ao quintal
se dava por uma escada que saia da cozinha em “L”
e descia imprensada entre paredes, numa área sem cobertura.
Mas voltando ao segundo quarto do lado esquerdo do corredor, era
um cômodo reservado para os criados, isso quando a família
dispunha de algum, a maior parte do tempo estava desocupado, servindo
de abrigo para alguns dos mais mimados dentre os vários
gatos da minha tia Judite. Havia duas coisas que mais me chamavam
a atenção nesse cômodo: A primeira era o oratório
com algumas imagens de santos que ficava num canto do quarto,
acima de uma das camas; A outra coisa era o que realmente mais
me incomodava, havia um outro cômodo dentro desse quarto
que dava acesso ao sótão. Local esse utilizado como
depósito de velharias. Ali havia um armário velho,
uns dois baús antigos de madeira, vários livros,
revistas e mais algumas bugigangas.
Não consigo me lembrar do momento em que comecei a ter
sentimentos ruins sobre aquele quarto, o que sei é que
esses sentimentos foram crescendo com o passar dos anos. Os meus
tios e avós nunca me relataram qualquer coisa ruim sobre
aquele local, mas já tinha ouvido histórias assustadoras
contadas por meu primo e pelos próprios empregados que
haviam ali pernoitado. Mesmo durante o dia não gostava
de ficar sozinho naquele outro cômodo do quarto, sempre
que estava ali não conseguia deixar de encarar, por alguns
instantes, a entrada para o sótão, parecia que a
raiz de todos esses sentimentos ruins que sentia estava ali.
Já tinha tido alguns pesadelos com aquele local, nos meus
sonhos alguma força antiga e maléfica que estava
trancada atrás da porta do cômodo que levava ao sótão
tentava forçar a porta para adentrar no quarto. Em algum
desses sonhos eu ouvia uma voz –como se fosse a de um ser
angelical – pedindo para que eu repreendesse aquele mal
infernal, mas eu não conseguia pronunciar a frase que ele
me falava. Relatei sobre o assunto dos sonhos e sobre aquele quarto
para o pastor da igreja em que eu e minha família frequentávamos
– a Congregação Batista de Itaquara –,
ele me disse que quando eu sentisse medo deveria pronunciar uma
certa frase (que para o meu espanto era a mesma que a voz dos
meus sonhos dizia).
Numa certa ocasião, meus pais receberam uma visita e eu
e o meu irmão tivemos que ceder nosso quarto para os hóspedes.
Como aquele quarto da casa dos meus avós – o segundo
do lado esquerdo do corredor – estava desocupado, meu pai
nos fez, a nosso contragosto, ir dormir lá. Meu irmão
tinha cinco anos na época, e eu onze. Nunca tinha contado
a ele sobre meus sonhos nem sobre as histórias sobre aquele
quarto, mas de certo modo, ele também sentia medo daquele
lugar.
Insistir com meu pai para que não fossemos dormir lá,
mas ele me mandou parar de ficar imaginando essas coisas, e recomendou
que lesse alguns versículos da bíblia e orasse pedindo
a deus que me desse coragem e que espantasse todo mal.
A noite chega e minhas preocupações aumentam. Chegamos
à casa, meus avós já tinham ido dormir e
minhas tias e meu primo estavam na sala assistindo televisão.
Ficamos ali na sala, assistimos ao jornal, depois à novela
e, por volta das dez horas, cada um foi para o seu aposento. Entramos
no quarto, tudo estava arrumado e limpo, a porta que dava ao outro
cômodo estava trancada e as imagens dos santos estavam organizadas
nas mesmas posições de sempre no oratório.
Tia Judite trouxe os cobertores e travesseiros, e esperou que
nos acomodássemos e lêssemos os versículos
da bíblia, após isso se despediu com um “boa
noite” e apagou luz.
Nesse momento o meu coração começou a disparar
e todos aqueles pesadelos e pensamentos ruins voltaram a dominar
a minha mente. A casa era muito escura, não dava para enxergar
a um palmo a frente dos olhos. Comecei a conversar com meu irmão
na tentativa de esquecer aquele momento, mas ele logo adormeceu.
Comecei então a sentir calafrios e encolhido, me enrolei
dos pés a cabeça, como se assim conseguisse me esconder
do mal além daquela porta.
Já eram onze horas e o sono não chegava. Os minutos
pareciam intermináveis. Naquele instante me veio um pensamento
absurdo, era sobre algumas crises de sonambulismo que já
tive algumas vezes quando era mais novo, numa delas, quando acordei
estava abrindo a porta da rua. O meu medo agora era esse: que
sonâmbulo fosse para dentro daquele cômodo, essa angústia
atrapalhou ainda mais meu sono.
A meia noite se aproximava e então o meu medo começou
a se materializar. Num primeiro momento, ouvi cochichos, e então
comecei a orar pedindo a deus que o dia não demorasse a
chegar. O barulho cessou, descobri meu rosto e vi algumas luzes
se projetando nos rostos dos santos, parecia que eles estavam
olhando para mim e tentando abrir suas bocas para me dizer algo.
Essa visão foi demais para mim, não tinha estrutura
psíquica ou espiritual para suportar aquilo. Pensei em
pronunciar a frase que tanto o pastor quanto a voz em meus sonhos
me dizia, mas tive medo daquela atitude causar a ira do mal que
ali estava.
Passados alguns minutos, comecei a ouvir sons vindos da porta
do outro cômodo, isso quase me fez sair correndo daquele
quarto, mas para onde iria? Nesse momento, nenhum lugar da casa
me parecia seguro. Pensei até em sair correndo para a rua
e ali fazer companhia à vigília do guarda noturno
até o dia raiar.
O relógio já marcava uma e meia da madrugada, o
cansaço então me venceu. Fui adormecendo com a sensação
de que a qualquer momento algo poderia sair daquela porta e me
pegar desprevenido. O medo de ser tragado por forças maléficas
e nunca mais ver a luz do dia ia adormecendo comigo. Caí
no sono sem saber se voltaria a ver o amanhecer.
Após um certo intervalo de tempo, me assusto. Quando dei
por mim, estava de frente a porta do cômodo que levava ao
sótão. A porta estava entreaberta e eu, paralisado,
era atraído por alguma força terrível para
dentro desse lugar. De repente aquela força me puxou escancarando
a porta e me fazendo adentrar de vez naquele local pavoroso. Olhei
então na direção do sótão e
o que vi ficou para sempre gravado em minha memória.
Uma criatura bizarra com cerca de um metro e trinta de altura
que flutuava na entrada do sótão estava me encarando
e cochichando palavras indecifráveis. Faltam-me palavras
para descrever tal imagem, mas a coisa era como uma fumaça
escura em forma de morcego e com um rosto humano de olhos grandes
e vermelhos.
Aquela visão me deixou inerte, sem forças para fugir
daquele local. A criatura continuava soltando palavras estranhas
e, apesar de não entender nada do que dizia, sabia que
aquilo era um convite para o desconhecido, para um local nefasto
cujo portal era aquele sótão.
Foi então que me lembrei do que o pastor e a voz dos meus
sonhos me disseram. Com o pouco de fé e coragem que ainda
me restavam, gritei: Eu te repreendo em nome do Cristo ressurreto!
Então, o que temia aconteceu, aquela minha atitude deixou
a criatura enfurecida, seus olhos arderam como chamas e aquilo
começou a vir em minha direção.
Nesse momento, senti uma mão segurar o meu braço
direito. Desperto, era minha tia Judite pedindo para que eu levantasse,
porque o café já estava pronto e não era
mais hora de alguém estar dormindo. Levanto e sento na
cama onde fico refletindo sobre aquela noite. Faço uma
oração de agradecimento por ter sobrevivido àquela
experiência, e me retiro daquele local. Mas mesmo aliviado,
o meu sentimento sobre o quarto persistiu, mesmo depois desse
dia. Algo dentro de mim aconselhou-me a nunca mais adentrar sozinho
àquele quarto à noite. A sensação
de que aquela força inominável poderia me levar
consigo para algum lugar macabro ficou como aviso para que eu
nunca mais repetisse aquela loucura.
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