Primeira vez neste site? Então
[clique aqui]
para conhecer um pouco da CBJE
Antologias: atendimento@camarabrasileira.com
Produção de livros: cbje@globo.com
Contato por telefone
Antologias:
(21) 3393 2163
Produção de livros:
(21) 3547 2163
(21) 3186 7547

Maria Rita de Miranda
São Sebastião do Paraíso / MG

 

Vidas entrelaçadas

     Era um começo de tarde de verão. Daquelas que o sol abrasador deixa nossas casas aquecidas e uma indolência toma conta da gente. O corpo clama por um descanso merecido para esta dona de casa, minha amiga, que acabava de encerrar as rotineiras tarefas domésticas. Senhora de pouco mais de setenta anos de idade, dona Zuca se senta confortavelmente na velha poltrona da sala de estar. Sonolenta me diz que sempre, nesta hora, fatos de sua vida passada teimam em lhe voltar à memória e que ela se sente transportada para outra tarde, tão remota, semelhante a esta.
          -Eu ainda era nova, diz ela, casada com Tavinho e sem filhos. Via os dias transcorrerem monótonos, a cada mês tentando engravidar sem sucesso. Foi nesta esperança de ter um filho que a minha vontade foi satisfeita de uma maneira tão inesperada, que ainda hoje sinto a mesma surpresa e susto ao avistar Tavinho entrando em nossa casa com uma criança nos braços. Levantei-me da poltrona  e corri para ele. Era um nenê lindo, moreninho, esperto. Sorri e ele disse:
          -É minha filha... Perdoe-me! Nasceu de um caso que tive com uma moça do baixo meretrício da cidade. Ela não tem condições de criá-la e vai embora daqui. Gostaria que a pegasse.
          Foi me entregando a criança que eu aceitei espantada.
          -Vamos torná-la nossa filha, por favor.
          Sentindo-me traída, chorei muito e briguei com ele. Mas ao ver aquele bebê indefeso me olhando, meu coração o aceitou. Ao mesmo tempo em que desprezava Tavinho, uma onda de amor percorreu o meu corpo e me vi atada àquela criança.
          -Maria será o nome dela, disse com apatia.
          Tavinho sorriu me agradecendo e a criança passou a fazer parte de nossas vidas. Amei-a como a uma filha de sangue e ela retribuiu este amor.
          Por ironia do destino, poucos anos depois engravidei. Dei à luz um menino e nunca os distingui um do outro. Passei a ser mãe de um casal de filhos.
          Maria só ficou sabendo que não era minha filha de sangue, quando resolveu se casar. Achamos que ela merecia conhecer sua verdade. Sua reação não foi de choro ou desespero. Abraçou-me e disse que mãe é a que cuida e que eu sempre seria a sua mãe. Choramos juntas, agradecendo uma à outra este amor incondicional. Nesta hora, toda a recompensa de ter aceitado aquela criança foi traduzida na emoção de receber um abraço apertado e longo de Maria.
          Como amiga íntima de Zuca, apesar de bem mais nova do que ela, eu já conhecia este fato, mas escutei-o como se fosse a primeira vez. Pouco tempo depois deste episódio, recebi com tristeza a notícia de sua morte.
          Muitos anos se passaram e eu, já envelhecida, encontrei-me com Maria de uma forma inusitada. Ela demonstrou grande alegria em me ver. Começamos uma longa conversa, num banco do jardim, quando ela me relatou que estava passando por um período difícil. Sua filha, de apenas quinze anos estava grávida e, tão nova, ia se casar. Este fato a havia abalado a ponto de sentir-se desamparada. Lembrou-se de sua mãe querendo-a consigo. Disse também que o fato de ter a mãe biológica ainda viva despertou nela uma vontade imperiosa de encontrá-la. Queria contar-lhe que ela era avó de um casal de adolescentes e que logo seria bisavó. Na verdade ela queria mesmo era uma pessoa que pudesse dividir seus problemas e que a confortasse.
          Maria encontrou a mãe biológica numa cidade próxima a que morava. Foi um encontro formal, desajeitado, cheio de desculpas e também promessas. Apresentou a ela seu casal de filhos e não mais deixaram de se relacionar.
          -O sangue fala alto, diz Maria. Sou filha de duas mães e sinto que minha vida daria um bom enredo para uma peça dramática. Sobrevivi à revelação de um segredo guardado a sete chaves, mas não sem sequelas. Vez ou outra me pego cheia de dúvidas impossíveis de serem resolvidas.
          Despedimo-nos e dificilmente a vejo.
          Aproveitando minha participação indireta no drama destas vidas, resolvi perpetuá-lo por meio deste conto.
          Hoje Maria é mãe e avó, órfã de pai e de duas mães.

 

 
 
Conto publicado no livro "Contos de quem passa... de quem entra... de quem sai... " - Dezembro de 2015