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Nilton Rodrigues Junior
Rio de Janeiro / RJ

 

Deslocado

  

  

Ninguém falava com ele. Ele não falava com ninguém.
Ninguém brincava com ele. Ele não brincava com ninguém.
Ninguém o conhecia. Ele não conhecia ninguém.
Simplesmente, muito simplesmente, ele estava naquela escola.
Ele não tinha um grupo ou mesmo um grupinho. Não visitava a casa dos outros alunos. Não frequentava as festinhas. Nem sequer era convidado. Não fazia perguntas durante as aulas. E as perguntas que lhe viam a cabeça, acreditava que não seriam respondidas. Não sentava nas mesas da frente, nem no meio, nem atrás. Ficava no canto, em um canto somente dele. Ele estava na sala de aula, sem estar. Não fazia diferença.
Chegou à escola como se chega ao deserto. Estava sempre só. Preocupou-se com a quentura das relações, com a secura dos olhares a ele dirigidos e com a falta de direção. Chegou e ninguém o notara.
Não havia professor ou professora que o estimulasse. Não havia matéria que mais gostava. Não frequentava a biblioteca, a cantina e nem os corredores. Na hora do intervalo, sumia. Na hora da aula, ficava invisível. Na hora da saída, desaparecia.
Os projetos, não o atraíam. Os trabalhos em grupo, os fazia solitariamente. Os eventos, não lhes interessavam. O Hino, não cantava.
Em um dia de março, início do ano letivo, chegou à escola. Sentou na carteira, abriu seu caderno, copiou do quadro, anotou os recados. Fez contas, conjugou verbos, resolveu problemas, observou mapas. Os professores não o olhavam. Não sabiam seu nome. Ele, não se importava com os professores, não sabia seus nomes.
Aos poucos foi descobrindo que não existia, que não fazia diferença para ninguém se estivesse ou não ali. Não fazia diferença para os outros alunos, para os professores, para a direção, para a escola. Nem mesmo para a Educação.
Aos poucos, bem lentamente, foi percebendo que podia entrar e sair da sala de aula e da escola sem que ninguém se importasse com ele. Não era visto, ouvido ou sentido.
Aos poucos, bem lentamente, mais lentamente do que alguém pudesse notar, foi percebendo que era um deslocado, que sua permanência ou ausência na escola não fazia diferença.
Foi descobrindo que sua vida não era responsabilidade da escola, da educação, dos professores ou dos colegas. Sua vida não dependia de ninguém. Nem dele mesmo. Nem sabia ao certo por que estava ali. Por que estudava? Por que frequentava as aulas? Por que tinha que saber matemática, português ou ciência? Por que precisava anotar o que os professores escreviam no quadro? Por que deveria fazer Educação Física? As perguntas, sem respostas, habitavam seu dia a dia.
Havia algo de estranho naqueles alunos. Havia algo de estranho naquela escola. Havia algo de muito estranho na educação. Havia algo também de estranho nele. Ele era um deslocado e nada era feito. Uns agradeceriam sua ausência, outros sequer a notariam. Os professores não se importavam com seu aprendizado. Seus colegas não lhe davam cola. Nas provas, bastava assinar seu nome.
Ele ia à escola e nada aprendia. Ele estudava e não enxergava um futuro. Ele lia seus livros, mas estes pareciam estar escritos em uma língua estranha. As contas, de nada lhe valiam. As fórmulas, não as sabia aplicar. As histórias não lhes diziam respeito. Nos mapas não encontrava sua casa. Na gramática não descobria seus medos.
Nada lhe agradava. Nem o uniforme, nem os colegas, nem os livros, nem a cantina, nem os laboratórios. Não lhe despertavam a atenção. Ele não despertava a atenção de ninguém.
Ele era um deslocado. Para aquela escola, para aqueles professores, para aqueles alunos ele era um deslocado. Não existia, não fazia diferença, não sentiam sua falta ou nutriam qualquer compaixão pela sua situação.
A perversidade do sistema o engolia lentamente.
Ele era um deslocado.
Um dia ele foi embora. Largou (seus?) colegas, largou (seus?) professores, deixou os livros jogados em um canto do quarto, não mais usou suas canetas e réguas. O transferidor e o compasso não faziam mais sentido. Não quis mais saber de matemática, português ou biologia. Desinteressou-se por quase nada que aprendeu na escola, deixou para trás seus estudos. Não perguntou pelo futuro. Não indagou o que seria, como viveria, como se sustentaria. Quem seria? Simplesmente, deixou tudo. Não sabia quem era e no que se tornaria.
A escola o deixou partir. Seus colegas não lhe procuraram. Seus professores não sentiram sua falta. Todos sobreviveram a sua ausência. A educação não o contabilizou nas estatísticas.
Ele simplesmente não existiu.
Afinal, ele era apenas um deslocado!

 

 
 
Conto publicado no livro "Contos de quem passa... de quem entra... de quem sai... " - Dezembro de 2015