Primeira vez neste site? Então
[clique aqui]
para conhecer um pouco da CBJE
Antologias: atendimento@camarabrasileira.com
Produção de livros: cbje@globo.com
Contato por telefone
Antologias:
(21) 3393 2163
Produção de livros:
(21) 3547 2163
(21) 3186 7547

Rubens Alves Ferreira
Taguatinga / DF

 

Moleques - III
Rusgas

Havia certa rivalidade entre os garotos dos diferentes bairros; e em algumas oportunidades a contenda ia às vias de fato. Em uma dessas “oportunidades”, Carlinhos foi obrigado a lutar; e o seu adversário notando sua anêmica imponência se empolgou todo; e constantemente o desafiava para um mano a mano – coisa que ele, o Carlinhos, tentava evitar a todo custo. Era afobado na luta de socos; e no solo ficava agoniado. Não entendia por que meninos suportavam ficar um tempão agarrados um ao outro, com aquele cheiro mútuo, acre – mistura de suor, pele e sujeira. Muito tempo depois, já em outras paragens, acostumou-se um pouquinho e perdeu parte do medo. Desenvolveu uma técnica para abreviar o incômodo e não passar por medroso e mijão: Media e controlava a distância do oponente; e quando aparecia uma chance, deixava-o se aproximar. Saltava sobre suas pernas e com os dois pés entrelaçados, travava suas “canelas” e girando o corpo concomitantemente, levava-o ao chão. Então, envolvia transversalmente a cintura do oponente desnorteado, com as pernas e apertava até este, vermelho e sem fôlego, pedir penico. Essa técnica era uma adaptação do aperto de jiboia do Gerônimo (O Herói do Sertão) – que era dado com um abraço de tamanduá – em pé. Apesar de miúdo, o garoto desenvolveu força nas pernas pela prática com tudo que pudesse apertar entre as pernas. Pegou fama e ao invés de livrar-se das contendas foi oficialmente designado como representante do grupo para a faixa dos pequenos. Para não ficar excluído ou em casa, o jeito era torcer e integrar a turma do “deixa disso”. – “Para com isso”, “dex’isso!”, “me sigura.”, “oia que bato nele! ”...
Na saída norte de Formosa, pela Avenida Valeriano de Castro, estrada para a Cachoeira do Itiquira havia uma erosão. Jericó, Carlinhos, Rodolfo, Jeová e mais uns dois pivetes estavam por lá tentando achar um caminho para descer. Tal erosão avançava devagar e havia lugares muito profundos que não tinha acesso para descer; e, uma vez lá dentro, muito difícil sair; mas o buraco estava lá... então era para entrar e sair.
 – E!!! Lá veim a turma do Rato. – Disse Jeová, apontando para a estrada.
 – vamo imbora. – Disse o Jericó esbaforido – vam’bora!
 – Vamo nada! – Falou Rodolfo. – O Rato é chapa do Renato. – Num vai fazê nada co’a gente.
Também não deu tempo de correr. Enquanto deliberavam a turma do Rato chegou com cerca de dez garotos de tudo quanto é tamanho. O Rato, apesar do apelido, era maior que o Jericó e mais forte. Impunha respeito pela cara fechada e a feiúra, também, por causa do irmão: Chamado de Bode. Em uma festa, este se desentendeu com um estranho, que conforme ficou-se sabendo era remanescente da Vila do IAPI próxima à cidade do Bandeirantes, Brasília – transferida em 27 de março de 1971, juntamente com outras invasões, para a fazenda Guariroba; local que na mesma data recebeu a pedra fundamental por iniciativa do então Governador do Distrito Federal Hélio Prates   com o nome de Ceilândia – (CEI: Campanha de erradicação de invasões). A briga se deu por que o sujeito, acompanhado de mais uns dois estava se engraçando com as garotas do bairro, e entre elas, a preferida do Bode. Após uns empurrões e troca de sopapos, o pessoal das redondezas cercou os três e os colocaram para correr. Antes de sair, o tal sujeito disse um desaforo para o Bode que saiu no seu encalço. Correndo na perseguição, com o fugitivo volta e meia se virando para trás. Com a toda adrenalina, a certo momento, Bode notou que estava com a camisa molhada. Foi aí que percebeu que havia levado um tiro no ombro esquerdo. Foi tiro de calibre vinte e dois e pegando de raspão, não causou maiores problemas. Mesmo assim, Bode ficou conhecido e desfilava por toda parte como “Bode peita-bala”.
Voltando para a erosão e a contenda, o Rato chegou e acercou-se da situação.
– Vamo jogá todo mundo no buraco. – Falou conclamando sua turma para se achegar.
– Cara! deix’isso pra lá. – Pediu o Rodolfo. – Você cunhece meu irmão!!!
 – É., mais num vô co’as fuça desse muleque! – Apontou com o dedo em riste para o Jericó. – Todo mundo pru buraco – sacramentou.
Depois disso cercaram Jericó e os companheiros e os encurralaram na beira da ribanceira. Naquela lamentação geral, os dois menores começaram a chorar, o Jeová e outro novato na turma, amigo do Rodolfo. Não se sabia se o Rato tinha mesmo a intenção de cumprir a ameaça; mas vai pagar para ver. Ao menos ele escolheu um local pouco profundo, com cerca de quatro metros, seria apenas uma ralação de bunda e alguns arranhões (mas, e para sair?). Depois de muita choradeira e suplicas do Rodolfo, o Rato resolveu liberar os chorões. – “Vai! Vai! Rapa daqui” – vociferava – e os dois correram com os passinhos curtos e pararam bem longe a olhar para trás, esperando e esfregando os olhos – os dois borocoxôs.
Rato continuou tocando terror; mas, após mais algumas broncas, cascudos, chutes na bunda e tabefes, resolveu pôr o resto para correr. “Simbora! Cambada. Da no pé” – dizia fazendo gestos com as mãos espalmadas para frente, como remadas de barco – “quem ficá pro útimo dança”. – Gritou olhando os garotos correrem um bom pedaço e pararem. Aí fez um sinal para os companheiros. No grupo dos fugitivos o Rodolfo chamou a atenção:
 – Cuidado! – Disse ele. – Cuidado!!!
 – O quié?! – Perguntou o Jericó – o quié?
 – Cuidado... – Apontou o Rodolfo. – Tão jogano pedra.
O Jericó olhou para trás; e, como que em câmara lenta observou uma pedra na direção de sua cabeça. Bem a tempo, conseguiu se desviar e gritou: “Corre! Corre! Corre!...” –  foi uma debandada; mas ele mesmo não escapou de levar uma pedrada nas costas.
Houve nas redondezas, ao menos o que se soube, só nas imediações, um surto de Catapora. Jericó apareceu com o rosto inchado e vermelho de um lado, usando um pano amarrado entre o queixo e a cabeça, passando pela orelha esquerda. Ele não podia nem estar andando; pois, conforme os mais velhos, se fizesse estripulias a doença descia e o doente ficaria “rendido”. Havia também o consenso de que se pega dos dois lados da cabeça; um de cada vez. Se alguém rir do doente, pega. Carlinhos fez de tudo para não rir, travou o rosto e a garganta; mas não teve jeito – contraiu caxumba. – Acabou rindo.


 
 
Conto publicado no livro "Contos Selecionados de Grandes Autores Brasileiros" - Maio de 2016