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Romilton Batista de Oliveira
Itabuna / BA

 

Sem-nome

 

Ele nasceu. Ninguém foi testemunha de seu nascimento porque sua mãe logo em seguida veio a falecer. Foi morto por um SS, e logo em seguida jogado numa daquelas valas em que outros corpos também foram jogados. O menino foi aos poucos tentando ser humano na aparência frágil de sua existência. Não teve pai, não teve mãe, não teve língua própria. Falava uma língua repleta de pedaços de signos misturados.
Um homem chamado Adorno que vivia sempre naquele vagão era quem sempre auxiliava o menino a tentar falar a sua língua, mas o menino que nunca teve nome porque foi nascido do silêncio e da dor, até que conseguia pronunciar algumas tantas palavras. Outro homem de nome Benjamim também o auxiliou, porém este era de origem francesa. No vagão onde viviam mais de mil pessoas Sem nome caminhava pra lá e pra cá, buscando em meio a toda aquela confusão alguma coisa que pudesse lhe dar visibilidade.
Por volta de quatro anos, uma sobrevivente do horror de nome Hannah Arendt resolveu lhe batizar de Paul Celan. Assim passou a ser conhecido por todos por Paul Celan. Mas o menino não se sentia Celan, mas atendia quando lhe chamavam por este nome. Depois de dois anos, o menino “Celan” viu com os seus próprios olhos tudo o que um menino de seis anos nunca gostaria de presenciar. Vira o horror da dor, da morte, dos corpos queimados, dos corpos jogados à vala, de homens, mulheres, idosos e outras crianças levadas à sala de câmara de gás. De homens matando homens sem nenhuma razão. Viu nascer dentro de si um vazio do tamanho do mundo inteiro, um vazio inominável. Sentia-se sem pátria, sem voz, sem vez. Sentia-se desprovido de alguma coisa que ele nem mesmo sabia. Procurava uma palavra que pudesse explicar o que os seus frágeis olhos viam, mas não encontrava porque lhe faltava uma língua primitiva, uma língua que tivesse uma palavra capaz de definir a atrocidade feita por homens a outros homens.
No meio de todo aquele arsenal de confusão de armas, corpos, pensamentos permeados pela zona do medo, da dor e da morte, o menino que nunca gostou de ser chamado por Paul Celan, reconhece que jamais poderá carregar algum nome, pois ele fora nascido sem esse direito, nascido sobrenaturalmente, nascido no silêncio e achado por estranhos que também desapareceram, morreram, foram consumidos pelo horror. Ter um nome seria para ele fugir de sua realidade. Nominalizar seria realizar o luto, e ele não estava ainda preparado.
Começou então a imaginar-se Paul Celan, começou a imaginar-se como um menino que deixou seus pais em algum lugar do mundo, começou a imaginar que tudo o que ele estava a ver era simplesmente fantasia, sonho ou imagens fugidias de sua imaginação. Percebeu logo cedo que sem a ajuda deste imaginário, sua vida seria transformado num grande caos e que certamente ele se suicidaria. Lutou contra tudo o que viu, lutou contra ele mesmo, até que se ouviu de longe vozes, várias vozes confirmando o fim da guerra. E ele dizia pra se mesmo: Que guerra?
O menino foi levado para um lugar onde foi tratado e recuperado. Foi adotado por uma família espanhola que logo o pediu que ele esquecesse de tudo o que viu. E o menino com um sorriso molhado de sangue disse: Mas o que aconteceu? Eu não sei de nada. Eu não vi nada.
O menino Paul Celan que nunca gostou de ser chamado de Paul Celan foi batizado por sua nova família de Jorge Semprun. Passados vinte e cinco anos, ele não se sente nem Paul Celan nem Jorge Semprun. Nenhum nome seria capaz de preencher o seu inominável ser. Exatamente depois de vinte e cinco anos, ele recobra a sua memória e escreve sua primeira autobiografia, intitulada: A vida de um Sem Nome em Aushwitz.
Só depois de ter escrito o que escreveu ele descarregou de si o peso que lhe atormentava há anos. Escrever é, sem dúvida, o refrigério que o menino-adulto-crescido encontrou para definitivamente adquirir um pouco de “paz”. Ao escrever, ele se sentia mais leve, mais liberto, menos morto. Assim “quando escrevemos, lembramos que morremos”, afirma-nos a pesquisadora Jeanne Marie Gagnebin. “A escrita é um enterro que produz um limiar no interior do qual lutos são internalizações de objetos perdidos que acabam por transformar tantos os vivos quanto os mortos”. Morremos quando escrevemos. E foi assim que o menino sobreviveu até os dias de hoje: escrevendo para matar de si esse resto inominável que lhe acompanha como parte integrante de sua construção humana. Escrevendo, ele busca um nome que realmente possa substituir o seu “Sem Nome”.

 
 
Conto publicado no livro "Contos Selecionados de Grandes Autores Brasileiros" - Maio de 2016