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José Luiz da Luz
Ponta Grossa / PR

 

A boneca de barro

 

Ela caiu. Na exaustão da febre e contrações no ventre, ela caiu. Carregava um vaso de barro que se partiu em mil pedaços. Após um tempo inconsciente que não podia mensurar, sentiu que estava só, a vista estava turva e as pernas frouxas, levantou-se com dificuldade e foi até um local cheio de barro e pôs-se a clamar:
          - Fala! Faça-te alma vivente!
          Nine admirava os lindos vasos que ajudava seu esposo modelar, entretanto secretamente fermentava na mente a antiga forma divina de criar, queria tirar do barro um ser que despertasse na vida, moldava uma boneca de barro.
          Enquanto seu esposo Bernold aprimorava cada vez mais seus vasos, ela aprimorava seu modelo único. Dava forma tal como Deus dá forma a um ser vivo em ventre de mãe: o qual dá o sopro da vida todos os dias, e modela aos poucos, e o coração bate... Nine se exauria nos detalhes, cuja hipótese era que se chegasse à perfeição, por um impulso de seu amor sua criação inanimada ganharia vida. O seu protótipo seria alguma coisa de anjo e fada, entre beleza e sorrisos. Logo que aprimorou e se deu por satisfeita, ajoelhou-se ao lado de sua criação e repetiu as solenes palavras:
          — Fala! Faça-te alma vivente!                     
          Esperou angustiada que aquele peito palpitasse e aquelas pálpebras se abrissem, parecia apenas uma questão de tempo, entretanto permaneceu imóvel. Não era um ser que dormia, porque nunca despertou na vida, o qual fê-la sussurrar de desespero:
          - Oh, minha doce criação! Tal como Deus insuflou o barro dando origem à vida, ao que era frio e sem alma, receba sobre teu seio o sopro de minha alma. Respirai também o perfume das flores da minha vida, tristes flores, que desfolho por ti.
          A tarde era fria de um inverno enevoado. Cansada e pela ardência do vento Nine entrou em sua casa para se acalmar e tomar um café quente. Ouviu uma breve voz distante do seu amado como um eco a lhe chamar, mas quando respondia o eco sumia. Procurou-o pela casa, no quintal, na cabana dos vasos, deveria encontrá-lo, não achava explicação plausível para sua ausência, a não ser um imprevisto que o obrigasse a sair sem avisar. Ora o eco surgia, ora silenciava. Pensou: “a queda fez-me ouvir coisas”.
          Deitada no sofá se contorcia de dor por um fogo que ardia em seu ventre e turvava a visão. Naquele delírio era como se visse uma boneca de barro dentro do próprio ventre lutando para se tornar alma vivente. Imediatamente foi ao banheiro lavar os olhos tentando arrancar aquela visão que parecia estar grudada nos olhos, entre soluços sussurrou consigo mesma:
          - Tenho que parar com isso, estou enlouquecendo, vou destruir aquela boneca.
          Pegou uma faca e a passos ligeiros foi em direção à sua criação inanimada, mas a boneca de barro tinha sumido. Jogou a faca e um pranto se derramava. Era evidente que ganhou vida e saiu nua pela cerração gelada procurando pela mãe: “Pobrezinha, ouço seu gemido de medo, sozinha, no mundo longe dos anjos!” Não era só uma boneca perdida, havia o sentimento de uma filha do ventre, e passou a chamá-la pelo nome de Isle.
          Restava procurá-la antes que caísse em um abismo e voltasse a ser barro. Queria aquecê-la, senti-la nos braços, sentir sua boquinha sugando o leite do peito.
          Naquele delírio Nine seguiu seus gemidos até achá-la no jardim, era uma forma branca de criança, uma menina loura de olhos azuis como um anjinho que brincava de fugir. Nine se aproximava, mas ela sumia, na verdade queria atraí-la para outro lugar. Então Isle parou no exato lugar onde fora moldada.
          - Mamãe, estou com frio. Tu me amas?
          - Sim meu amorzinho, com toda força da minha alma.
          - Então me abraça.
          Era uma vida nos braços de Nine, por causa do seu amor e crença é que Isle viveu. Depois de agasalhá-la tirando a própria blusa, ela quis voltar ao chão. Foi um momento de intensa felicidade ouvindo-a sussurrar, outras vezes afogava-se em soluços. Depois emudeceu: passadas aquelas horas a linda menina falou.
          - Mamãe, por que quiseste que eu viva?
          - Por amor. Assim como Deus nos criou do barro, eu quis fazer de ti carne da minha carne.
          Isle estava pálida como a neve, ajoelhou-se e começou a amassar o barro formando um tapete. Nine estava tensa, a menina então falou:
          - Perdão mamãe, sinto que desfaleço. Foi por causa do teu amor que Deus permitiu que eu vivesse, Ele me deu um pouco de força vital da natureza para eu te amar alguns instantes. Está quase na hora.
          - Não - Nine desabou aos prantos vendo que os pés e parte da perna dela voltaram a ser de barro.
          - Perdão mamãe. Estou com medo. Tu me amas?
          - Sabes que sim.
          - Antes que seja tarde, vens comigo. Deita ao meu lado neste tapete, esta mesma força que me faz voltar ao barro te transformará também numa boneca de barro. Afinal, é a mesma força que faz todas as pessoas voltarem a ser barro quando morrem: o espírito voa às alturas, o corpo volta ao barro.
          Após um sofrido suspiro Isle continuou a falar:  
          - Então virão as chuvas e os ventos, e nossos corpos de barro derreterão e se fundirão na terra.
          Nine chorou de amor e medo, deitou-se e viu que de sua cintura para baixo havia se transformado também em barro.
          “Ela está gemendo, está acordando” Nine ouviu a voz do seu marido Bernold. Abriu os olhos, e mesmo com a visão ofuscada reconheceu que estava num leito de hospital.
          - O que aconteceu? Ai, minhas pernas, onde está Isle?
          - Calma, você desmaiou quando carregava um vaso e sua gravidez correu risco, foi socorrida e está no hospital. Enquanto dormias foste submetida a uma cesariana.
          A porta se abriu e a enfermeira entrou. Nine não aceitava a ideia de que fora apenas um pesadelo, pois a enfermeira mostrou-lhe sua linda filhinha: era Isle, um anjinho que brincava e dormia.


 
 
Conto publicado no livro "Contos Selecionados de Grandes Autores Brasileiros" - Maio de 2016