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Romilton Batista de Oliveira
Itabuna / BA

Maria - uma grande mulher

         A história que vou lhes contar tem a cor da laranja que cai no verão escaldante que tempera a terra e seus viventes com as cores de tantos olhos coloridos desta gente movida por sonhos e ideais. A história que vou lhes contar é tocado por sons e letras afinadas por uma gente que soletra de cor o destino de ser fiel à tradição de um povo que abre as portas para toda gente entrar. Conto-lhes uma história com a cor do povo baiano porque todo baiano carrega dentro de si um pouco de todas as gentes, de todas as línguas, de todas as cores, de todos os toques que movimentam o Brasil para frente.
A Bahia é de todas as gentes porque foi aqui onde tudo começou: a cultura, a história, o desenvolvimento, a descoberta, o sonho, o beijo, o abraço e o jeito musical de fazer da vida um canto de alegria que enfeita de sonhos quem sabe viver. Pois bem, vamos ao que nos interessa! Vamos falar de uma mulher que nasceu numa cidade baiana que carrega como sobrenome a palavra Caetano. Filha de Alexandrina Teodósia dos Reis e de Josino Caetano da Silva, ela foi desde cedo viu a dureza da vida no interior da Bahia. Herdou de seu pai o “Caetano da Silva”, única das filhas que foi registrada com este sobrenome. Conviveu durante um bom tempo com os seus irmãos Francisco, Antônia, João, Raimunda e Maurício. Porém foi separada de seus pais e da família indo morar com uma mulher que, num pequeno tempo da vida. Sentiu a falta de sua família. Depois de um bom tempo, sua mãe a teve novamente. Francisco virou carreteiro, João seguiu o militarismo, Antónia casou-se e foi morar em São Paulo, Raimunda também casou-se, teve três filhos, separou-se e foi morar em Eunápolis, quando era ainda o maior povoado do mundo e Maurício se perdeu de vista e entrou no álcool, distanciando de todos nas entranhas da grande cidade metropolitana paulistana. Francisco virou pastor e congregava com sua palavra de fé. Antónia divorciou do marido e vivia de pedaços largados do passado que deixou em sua existência um amargor com gosto de álcool. João plantou na terra várias sementes de bem-me-quer e casou com a tia Nê do ilustre narrador desta história. Maurício continua no vácuo obscuro da vida e Raimunda cuida de seus filhos e se sente protegida por um contínuo horóscopo que limita a sua vida.
O tempo passou, passou, e tudo se fez diferente. Antônia voltou para a Bahia, deixando para trás sua vida desencontrada, e depois de alguns anos descansou com boa partida porque era meiga, singela, bondosa e divina. E Deus a tomou para si num rápido gemido de flor. Maurício bebeu, bebeu, bebeu, e depois cai no chão, abandonando para sempre sua vida sem cor. Raimunda se entristeceu, perdeu sua magna filha, e depois de alguns anos adoeceu. Foi socorrida por almas bondosas da santa e divina compreensão de sobrinhas cobertas de ouro em sua alma recheada por cristais de puro fino tecido amarrado por um amor especial que só tem quem sabe ser fiel ao seu divino Senhor. João é um vencedor, perdeu sua esposa, teve sua vida ressignificada, e logo Deus lhe deu o que estava guardado por um futuro promissor. É a memória de toda uma geração coberta de sonhos, dores, estradas, traumas e mudanças. È generoso, portador de uma história que não se pode contar neste conto coberto de pequenos signos e por letras efêmeras que se deslizam em cada palavra escrita.
E Maria, o que aconteceu com Maria? Maria casou-se com Adelino. Teve vinte filhos. Cuidou de sua mãe por longos e sofridos anos. O narrador ainda se lembra da voz de sua vô querida, deitada na cama a pedir-lhe água, a pedir algo:
– Lau, traz água pra sua avô! Lau, vem aqui! Lau, cadê Maria? Lau, vem aqui, meu filho! Lau, pega o bacio! Lau, ajuda a sua vô a mudar o corpo! Lau! Lau!Lau! Lau!
Neste momento, o narrador dá uma parada na história porque tudo que se escreve partindo de um lugar movido por mistérios, onde a memória traz do passado cenas e imagens que nos fazem chorar...
De volta à cena, continua o narrador, que, teclando em seu notebook, aguarda ansiosamente cada signo que pula lá de dentro de seu interior, saindo de bem longe, despertando-se de secretos silêncios, perdas e distanciamentos. Cada palavra não nasce, porque elas já estão vivas, porém dormiam e foram acordadas de seus “intervalos de diamante”. E quando acordadas, brilham em nossa mente, pedem passagem, e passam a ter voz que lhes foram arrancadas quando estavam a dormir. A voz é parte da palavra, faz parte da palavra, movimenta-a em suas várias direções. Vamos então ao lugar de onde paramos: o narrador e o respectivo leitor que me acompanha.
O belo irmão de Maria compartilha com ela, com grande estilo, o cuidar de sua doce mãe querida. Maria e João sempre se deram bem. Eles foram os únicos filhos que o narrador viu (com os seus próprios olhos afinados e bem abertos) que realmente cuidou da avô do narrador. Um narrador que narra uma história sem nome e sem data, mas uma história que merece ser ouvida por um leitor competente e pós-moderno, que possui olhos bem acesos por brasas que iluminam o imaginário híbrido de toda escrita que laboriosamente é tecida por um encontro de tempos que não se medem por discursos nem narrativas, mas que pode ser bem compreendida por severos “desbravadores da leitura”.
Maria perde o seu esposo. Adelino deixa saudades no coração da grande guerreira e dos filhos que sabem valorizar o legado desta grande mulher. Maria que carrega em sua semiologia o peso de um santo nome divino. Maria que sempre sofreu, mas nunca deixou de ser o que sempre quis ser: uma mulher feita de fibras de verão, uma mulher que, de verão a verão, no rio descia para lavar e pescar, trazendo para casa a refeição do outro dia. Hoje o rio chora e implora: Ana, Caetana, Sacana, quebra a cana, e enrola a cama na escama do tempo que me maltratou e te maltrata em suas memórias. O rio chora o seu lamento neste rápido episódio da história de Maria, uma mulher que adentra os 84 anos com o seu mesmo sorriso de tantos anos atrás quando entrava no rio, e o dominava coma sua força de mulher. Nadava, pescava, brincava, vencia as ondas e as águas que a muitos ceifou. O rio chora sem lágrimas porque em seu leito não há água como as que banhavam o corpo de Maria. Maria chora com o resto de água que a sua vida lhe dá e pede neste dia de confraternização: Não deixem meu rio morrer! Salvem a minha história! Salvem Itabuna! Permitam que meus olhos, um dia, veja novamente, aquelas águas que tanto matou a minha sede, que tanto me deu peixes bem robustos, que tanta alegria e prazer me proporcionaram!
Maria!? Silêncio. Maria nasceu no dia 10 de janeiro de um ano coberto de história, de um ano em que o Brasil era um outro, de um ano em que o Brasil sofria para chegar aos seus repetidos dias de sofrimento: 1932. Neste ano, Itabuna, a cidade que ela escolheu para morar e ser feliz completava 22 anos de fundação. Hoje, 105 anos de progresso e de maus-tratos, mas uma cidade cheia de histórias para contar porque foi desta grande mulher que nasceu o narrador que ora vos escreve, que ora é impulsiona a digitar letras, palavras e discursos permeados por uma saudosa memória que não passa, não passa porque foi construída sob os pilares de uma gente repleta de fé, cidadania e tradição, e Maria e uma delas porque soube plantar alegrias, construir amigos e ser amada por tantos filhos, e, em especial, por este sensível narrador.
Maria. Silêncio? Não! Grito de esperança que avançara por vários anos que virão porque Maria é centenária, e ao lado de algumas outras sobreviventes e participantes da história de Itabuna, como Madalena e Dona Zefina. Madalena que carrega em si também o peso semiótico de um nome construtor, de um nome que biblicamente possui o sentido de perdão, transformação e reconstrução. Saudar Maria é também saudar essas duas mulheres que fazem parte também da história desta grande cidade que não mede esforço para vencer os obstáculos que atualmente aparecem.
Maria? Maria é Maria, mãe do Nazareno. Filha de nosso Senhor Jesus Cristo. Maria Caetana é Maria: mar que ria, Maria; Maria é Caetana: Cai e se levanta porque é sustentada por uma Força que vem do Alto. Maria é Maria, diferente de tantas outras Marias, unida pela força que há em todas as Marias, palavra repleta de mistérios que faz de toda Maria ser o que é: simplesmente divina e especial. Maria carrega em si a voz de todas as mulheres, a voz única que carregou em seu ventre o Salvador, o Filho de Deus. Sendo Filha, Maria se fez mãe, e sendo mãe, Maria se fez serva, e sendo serva e obediente, Maria se fez bem-aventurada entre todas as mulheres e todas as Marias do passado, do presente e do porvir. Maria, doce encanto de ser mulher: minha mãe: Maria Caetana da Silva.

 (Homenagem à Maria Caetana, pela passagem de seus 84 anos)

 

 
 
Conto publicado no livro "Contos de Verão" - Março de 2016