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José Luiz da Luz
Ponta Grossa / PR

A andorinha

 

      Chamaram-me de sonhador, mas não me ofenderam, apenas manifestaram a própria loucura, embora não haja total demérito na loucura. Sonhar é diferente de ser louco: entendo que loucura é a embriaguês da alma deixando-a sensível às impressões, assim muito do que é glorioso e profundo tem sua origem na loucura; ao passo que sonhar é a inteligência da alma deixando-a sensível aos desejos, assim ela penetra nas leis da eternidade, conhece a atmosfera da “luz astral” vendo outras realidades.
         Diremos, então, que tenho duas fazes no meu mundo interno: a da vontade que rastreia a luz e a fé; e a da imaginação que se mescla à sombra e dúvida. Meu nome é Puffieri, chamam-me de Conde Puff. Sou assim: ora excito minha vontade ao ponto de transformá-la em férrea imaginação. É difícil definir onde termina o sonho e onde começa a loucura. Cada pessoa tem sua própria linha divisória: o que é loucura para um, não é para outro.
          Numa tarde de finados me encontrava no portal do cemitério, se foi loucura ou sonho, não sei, só sei que sentei e fechei os olhos pensando qual o sentido da vida, se o corpo acaba na terra. Quando abri os olhos minha visão estava turva e as pessoas sumiram, não tardou que ouvisse um ruído na vidraça da capela de uma sepultura. “Por certo”, pensei, “é um espírito dando sinais.” Meu coração disparou tentando decifrar alguma mensagem. Acreditava, mas era necessário duvidar: “Nada mais que o vento.” 
          Bati no basculante entreaberto e saiu uma andorinha que pousou sobre a cruz no alto. “Um susto apenas.” 
          — Deveria ser um morcego — disse eu. — Mas tu? És ousada. Tua espécie vive em árvores cheias de vida, mas preferiste um templo de morte.
          A andorinha emitiu um canto, depois, mesmo sem fazer nenhum sentido à razão, pasmei ao ouvi-lo se transformar em palavras claras.
          — O que buscas? — perguntou a andorinha.
          — O sentido da vida.
          — Viestes ao lugar certo, entender a vida no seio da morte. Aqui todas as sedes e fomes terminam: aqui nem troféus, medalhas e diplomas, nem ouro e louros têm valor. Todos daqui já se foram, amanhã também te vais. Nisto está o sentido da vida.
          Depois ela nada mais disse. Eu pensava: “Ave louca, o sentido da vida não pode estar na morte.”
          De súbito deu um voo rasante sobre meus cabelos, e ágil pousou na abobada da capela. Como quem soubesse o que eu pensava, ordenou-me:
          — Apontes quais são os túmulos dos ricos e dos pobres.
          Embora sem ver utilidade naquilo, facilmente distingui os luxuosos dos humildes.
          — Aqui todas as diferenças terminam — disse ela batendo as asas.
         Antes que eu pudesse questioná-la, voou ligeira para dentro da capela fúnebre pousando num lustre, depois me chamou. A visão foi assustadora, dois corpos desenterrados jaziam numa maca para serem exumados.
          — Por certo — disse eu — és a exceção das andorinhas. Aprendestes em alguma viagem que o fim e o abandono do humano é uma caixa de madeira.
          Corri para fora a fim de não ver os horrores da decomposição. “Eis o destino de um homem: transformar-se num saco de ossos.” Encostei-me na parede e chorei, aquela visão não saia dos meus olhos.
          Seguiu-me aquele pássaro ao entorno gritando:
          — Se queres aprender, enfrenta teus medos. Entra, pois verás o sentido da vida.
          Com orgulho ferido, fiz-me de corajoso e entrei novamente.
          — Contempla os corpos e aponta qual o do rico e qual o do pobre — ela ordenou-me.
          — Qual o sentido disso? — retruquei.
          A ave sorriu da minha amargura. Prostrei-me defronte dela, e sob o alvo dos seus olhos me senti forçado a entrar, fitei os restos daquilo que um dia foram seres humanos; e, depois de alguns arrepios e muito observar, respondi:
          — Difícil, a única diferença é um dente de ouro que porventura possa caracterizar o de maior riqueza. Isto e mais nada.
          — Aqui todas as diferenças terminam — ela repetiu.
          “Estou louco!” — pensei. — “Pássaro falante não existe. Será um espírito se manifestando através de um pássaro errante? Fosse o que fosse, se a intenção era me assombrar, conseguiu.” Tentei desviar o olhar e dispersar o pensamento certo de que não passava de uma alucinação provocada por algum remédio, e que logo tudo estaria desaparecido. Passado um tempo que não sei precisar, olhei e a ave estava lá, de olhos fitos em mim. Eu fiquei cismando, de cabeça reclinada:
          A pregação dela me deixou em luto e em desgosto: estudei e trabalhei tanto na vida, hoje velho e cansado me orgulho dos diplomas, fortuna, poder... e deleito meus olhos nos troféus e medalhas. Mas, sinto minha alma vazia. Logo chegará minha hora. Estou diante de ossos ressequidos, eram revestidos de carne vivente enquanto seres humanos. Onde estão suas riquezas? Chorei muito.
          — Qual o sentido da vida? —indaguei a andorinha
          — Todo tempo estou te mostrando — disse ela. — O que pertence à natureza material fica na terra, o que pertence à natureza espiritual vai com o espírito. Quem ganhou só bens materiais morre pobre, pois são perecíveis e pesados para serem levados. A verdadeira riqueza são os bens espirituais, estáveis e leves, que são levados ao mundo espiritual.  O sentido da vida é enriquecer o espírito, não o corpo.
          Enquanto eu observava os túmulos luxuosos, ela voltou a falar:
          — Não chora. Não adianta castelo, túmulo rico, nem sequer um dente de ouro levarás. Sou uma andorinha viajante e estou aqui só de passagem: os homens são como andorinhas, estão na terra só de passagem.
          Após uma vertigem eu passei por um ligeiro desmaio, quando voltei a si estava sentado na calçada do portal do cemitério, a andorinha tinha sumido. Olhei em volta e estava cheio de pessoas.
           Se alguém perguntar o que aconteceu comigo, eu respondo:
          — Para alguns foi um sonho, para outros loucura, para mim uma visão.

 

 
 
Conto publicado no livro "Contos de Verão" - Março de 2016