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Rui José Bodanese
Pato Branco / PR

Aconteceu na rua Guarani e adjacências

Ano de 1964, a família de Ary Bodanese não queria mais ficar em Cascavel, Paraná, por aquela cidade não ter ensino de 2º grau para seus filhos. Como o pai queria deixar de herança para os filhos, o estudo, mudou-se para Pato Branco e, temporariamente, de aluguel, instalou-se na Rua Aimoré, esquina com o Agostinho Pereira. Pato Branco, na época mais famosa, já possuía o curso Científico, Contabilidade Comercial e a Escola Normal.
Em pouco tempo Ary e Doracy, com seus cinco filhos: Ivone, Flavio, Rui, Rudi e Orivan adquiriram uma casa na Rua Procópio de Lima. Ninguém conhecia essa rua. Ficava no final da Guarani. Nos anos 60, essa parte da cidade ficou famosa, porque pela Guarani e via Procópio de Lima, podia-se chegar ao Matadouro do Açougue Gabriel. Famoso na época. Podia-se vê-lo de qualquer parte da cidade pelos corvos que, em círculos, voavam em cima do matadouro.
A Rua Guarani era conhecida por muitos aspectos. O campinho de terra da gurizada, em lote vazio defronte ao Chemin, onde duas vezes por semana, ou mais, desobedeciam as orientações dos pais e montavam seus times de futebol-poeira. Dez faziam dois times e os demais atletas ficavam na reserva. Todos jogavam ao comando do Piraí. Todos também saíam sujos e encardidos para o deleite das mães.
Ah! Rua Guarani! Guarani, palco da morte trágica em acidente de Tártari (sócio do Palagi), Guarani da loja do Rizzi, do Empório Slonski, com suas tuias. Guarani de um dos melhores cinemas da cidade. Rua Guarani do maior incêndio da época, o famoso hotel Dão Carlos. Do bar sobre o rio. Do ponto de ônibus, verdadeiro estacionamento de quem vinha do interior do município. Guarani do Posto, Guarani do jogo de bolão, no seu final, onde todas as semanas era palco de grande público. Uns para assistir e beber; outros para jogar, beber e perder dinheiro. Soube-se pelos anos, que dos viciados em competições a dinheiro todos perderam. Quem ganhou moeda desestruturou a família, contraiu problemas. Rua Guarani que levava as pessoas ao aeroporto.
Rua Guarani e adjacências foi palco de muitos causos. No princípio não havia ruas transversais, nem paralelas, eram Picadas, Carreiros. Os terrenos transgrediam as demarcações. Da Guarani esticavam-se até o rio Ligeiro. Naquela época ele era ligeiro. Quem podia fazia dos fundos do lote, onde hoje é a Rua Jorge Lacerda, potreiros. Criavam vacas leiteiras, não só para o sustento, como também para complementar a receita mensal.
Certo dia, ou melhor, certa noite, o Vermelho para uns, Foguinho para outros, 30 anos, homem com uma perna de pau, devido a um acidente na infância, voltava do trabalho e cumpria, como sempre, a via sacra nos bares que ligavam o centro até o final da Guarani, onde morava. Cada bar era um jogo de sinuca e o “martelinho”, underberg com cachaça. Rua muito escura, cada casa tinha no mínimo um cachorro. A iluminação era precária. As noites de luar ajudavam muito. Os cachorros estavam doidos naquela noite. Um deles pulou a cerca e de nervoso largava até espuma pela boca de tanto latir próximo das pernas do Vermelho. Foi preciso não se defender com a muleta que o acompanhava, mas transformá-la num tripé e oferecer a perna de pau, protegendo a boa, para o deleito do cachorro, que percebendo a quebra de um dente voltou acuando como se tivesse apanhado.
No dia seguinte, a perna detonada, de madeira forte, parecia um troféu exposto para os amigos testemunharem tamanha ousadia e os estragos do cachorro.
Rui, hoje aos 62 anos, filho de Ary, daquela região, é testemunha das habilidades dos guardas-noturnos. A Rua Guarani foi pioneira na existência desses guardas. Eles vestiam-se de azul bem escuro, tinham uma arma e um apito. Das 21 horas até às 6 horas do dia seguinte, de meia em meia hora, um silvo longo e dois curtos seguidos era o sinal para o guarda mais próximo de que tudo estava em ordem. Cada comunicação dessas atiçava a cachorrada que, em coro, despertava até os galos que perdiam o horário de cantar. Não sabemos se a inexistência de larápios se dava pelo temor dos guardas-noturnos ou pelos latidos da cachorrada afoita.
Ir ao colégio, principalmente na chuva, era um sacrifício. Os carros sem tração tinham que pôr correntes nos pneus, e os alunos usar a galocha sobre o sapato para poder transitar. Mesmo assim molhar a canela de barro era normal.
Quem se atrevesse evitar a Guarani e optasse pelo carreiro à beira do rio Ligeiro, corria o risco de se defrontar com um animal ruminando no escuro. Tudo isso acontecia na Rua Guarani e adjacências.

 

   
Conto publicado no livro "Contos de Verão" - Edição Especial - Abril de 2014