Otaviano
Maciel de Alencar Filho
Fortaleza / CE
Um sonho a mais
Quando chegam os meses de Janeiro, Julho e Dezembro, período
relativo às férias escolares, ruas, avenidas, praças
e demais espaços públicos tornam-se mais movimentados
que ordinariamente, isso se deve naturalmente à presença
de crianças, adolescentes e jovens, que por um lapso de
tempo se veem livres das salas de aulas das instituições
escolares que os acolhem, no dever de dar-lhes a educação
necessária, e assim prepará-los para um futuro promissor.
Enquanto o futuro não chega, trazendo com ele a responsabilidade
e o dever de conseguir um emprego, que na maioria dos casos toma
quase todo o tempo de nossas vidas, por que não aproveitar
esses meses de folga para se divertir à vontade?
Um dos passatempos mais apreciados pela garotada, é sem
dúvida nenhuma, a prática de soltar pipas, também
conhecida em algumas regiões do Brasil por papagaios, pandorgas,
pepetas ou raias. O céu fica multicolorido, notavelmente
devido à presença dos artefatos feitos de papel
das mais variadas cores, tamanhos e modelos.
Existe um tipo de competição que é praticada
por grande parte dos adeptos de empinar pipas: trata-se de “cortar”
a pipa do outro competidor. Para isso torna-se necessário
preparar a linha. O método utilizado pela maioria dos competidores
é bastante simples: tritura-se vidro, deixando-o em forma
de pó e acrescenta-se cola de madeira já preparada,
formando assim uma pasta que será passada em toda a extensão
da linha. Essa pasta recebe o nome de cerol. Agora é só
esperar secar e ver se a cola aderiu firmemente à linha
e testar se a mesma tem alto poder cortante. Fazem-se alguns testes
com outras linhas antes de se empinar a raia para, então,
participar do torneio. Ganha aquele que conseguir cortar a maior
quantidade de raias. Quem traz a raia “enroscada”,
para junto de si, logo após cortá-la, procedendo
ao enrolamento da linha no carretel, que muitas vezes é
substituído por uma lata de leite vazia, consegue uma posição
de status melhor que os demais.
As técnicas para lograr êxito na competição
são as mais variadas: Lancear por cima e “embiocar”,
ou seja, descer de bico e ir soltando mais linha rapidamente até
tocar a outra linha e cortá-la, pois este movimento age
tal qual uma lâmina afiada que, dificilmente não
mandará a outra pipa pelos ares. Outra variante é
colocar-se por baixo da linha do oponente e dar um puxão
na pipa fazendo com que a mesma suba rapidamente até encostar-se
à linha e soltar bruscamente o fio cortante, que agirá,
igualmente, como uma afiada lâmina de navalha. Existe também
a modalidade de “pegar pelo rabo” e tantas outras
variações que a imaginação permitir
se faça.
Embora seja proibido em muitos municípios brasileiros,
e até passível de punição, usar cerol,
essa medida não é obstáculo aos amantes deste
tipo de competição, já que não respeitam
as leis que visam proteger os próprios participantes da
brincadeira como os transeuntes que circulam pelas ruas e avenidas
fazendo uso de ciclomotores, de vez que, sendo muito fina, a linha
não é percebida pelos motociclistas, que são
surpreendidos pelo fio cortante que geralmente alcança
a altura do pescoço. As estatísticas demostram que
inúmeros acidentes são provocados pelo uso do “cerol”,
havendo, inclusive, registro de vítimas fatais.
Naquela tardinha ensolarada, quando retornava do trabalho um pouco
mais cedo, ao passar por um terreno baldio de esquina com a rua
em que moro, vi Felipe, um garoto que sofre de deficiência
motora, causada por complicações cerebrais, que,
no entanto, não o impede de realizar algumas tarefas, embora
precise de cadeira de rodas para se locomover.
Estava ali, em sua inseparável cadeira de rodas, acompanhado
de seu pai. Observei que ele empinva uma raia e fiquei admirado
com a alegria estampada em seu rosto. A dificuldade em segurar
o carretel de linha era minimizada pelo auxílio prestado
por seu genitor.
- Brincando de soltar raia, né Felipe? - Falei.
Ele olhou para o lado, e soltando leve sorriso balbuciou algo
como a dizer: não está vendo?
Conversando com seu pai fiquei sabendo que o sonho dele era soltar
pipa, então ele o levou para realizar seu desejo.
Olhando atentamente para o céu pude notar a presença
de mais duas pipas, e disse:
- Cuidado para não cortarem a sua raia, tem outras duas
lá em cima.
O pai de Felipe me assegurou que as outras duas raias eram de
dois amigos dele de sala de aula, e eles não estavam utilizando
“cerol”, o que queriam mesmo era divertirem-se, vendo
lá no alto, as raias livres para voarem de um lado para
o outro.
- Ah, se todos que empinam pipas tivessem consciência de
que o uso de cerol é proibido, muitos acidentes seriam
evitados, inclusive o de se cortar com a própria linha.
- Falei, despedindo-me dos dois, descendo rua abaixo e pensando
comigo mesmo:
“Talvez Felipe, no seu inconsciente, se visse voando tal
qual aquelas raias e se imaginasse livre da cadeira que o aprisiona”.
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