Primeira vez neste site? Então
[clique aqui]
para conhecer um pouco da CBJE
Antologias: atendimento@camarabrasileira.com
Produção de livros: cbje@globo.com
Contato por telefone
Antologias:
(21) 3393 2163
Produção de livros:
(21) 3547 2163
(21) 3186 7547

Otaviano Maciel de Alencar Filho
Fortaleza / CE

 

Um sonho a mais


Quando chegam os meses de Janeiro, Julho e Dezembro, período relativo às férias escolares, ruas, avenidas, praças e demais espaços públicos tornam-se mais movimentados que ordinariamente, isso se deve naturalmente à presença de crianças, adolescentes e jovens, que por um lapso de tempo se veem livres das salas de aulas das instituições escolares que os acolhem, no dever de dar-lhes a educação necessária, e assim prepará-los para um futuro promissor. Enquanto o futuro não chega, trazendo com ele a responsabilidade e o dever de conseguir um emprego, que na maioria dos casos toma quase todo o tempo de nossas vidas, por que não aproveitar esses meses de folga para se divertir à vontade?
Um dos passatempos mais apreciados pela garotada, é sem dúvida nenhuma, a prática de soltar pipas, também conhecida em algumas regiões do Brasil por papagaios, pandorgas, pepetas ou raias. O céu fica multicolorido, notavelmente devido à presença dos artefatos feitos de papel das mais variadas cores, tamanhos e modelos.
Existe um tipo de competição que é praticada por grande parte dos adeptos de empinar pipas: trata-se de “cortar” a pipa do outro competidor. Para isso torna-se necessário preparar a linha. O método utilizado pela maioria dos competidores é bastante simples: tritura-se vidro, deixando-o em forma de pó e acrescenta-se cola de madeira já preparada, formando assim uma pasta que será passada em toda a extensão da linha. Essa pasta recebe o nome de cerol. Agora é só esperar secar e ver se a cola aderiu firmemente à linha e testar se a mesma tem alto poder cortante. Fazem-se alguns testes com outras linhas antes de se empinar a raia para, então, participar do torneio. Ganha aquele que conseguir cortar a maior quantidade de raias. Quem traz a raia “enroscada”, para junto de si, logo após cortá-la, procedendo ao enrolamento da linha no carretel, que muitas vezes é substituído por uma lata de leite vazia, consegue uma posição de status melhor que os demais.
As técnicas para lograr êxito na competição são as mais variadas: Lancear por cima e “embiocar”, ou seja, descer de bico e ir soltando mais linha rapidamente até tocar a outra linha e cortá-la, pois este movimento age tal qual uma lâmina afiada que, dificilmente não mandará a outra pipa pelos ares. Outra variante é colocar-se por baixo da linha do oponente e dar um puxão na pipa fazendo com que a mesma suba rapidamente até encostar-se à linha e soltar bruscamente o fio cortante, que agirá, igualmente, como uma afiada lâmina de navalha. Existe também a modalidade de “pegar pelo rabo” e tantas outras variações que a imaginação permitir se faça.
Embora seja proibido em muitos municípios brasileiros, e até passível de punição, usar cerol, essa medida não é obstáculo aos amantes deste tipo de competição, já que não respeitam as leis que visam proteger os próprios participantes da brincadeira como os transeuntes que circulam pelas ruas e avenidas fazendo uso de ciclomotores, de vez que, sendo muito fina, a linha não é percebida pelos motociclistas, que são surpreendidos pelo fio cortante que geralmente alcança a altura do pescoço. As estatísticas demostram que inúmeros acidentes são provocados pelo uso do “cerol”, havendo, inclusive, registro de vítimas fatais.
Naquela tardinha ensolarada, quando retornava do trabalho um pouco mais cedo, ao passar por um terreno baldio de esquina com a rua em que moro, vi Felipe, um garoto que sofre de deficiência motora, causada por complicações cerebrais, que, no entanto, não o impede de realizar algumas tarefas, embora precise de cadeira de rodas para se locomover.
Estava ali, em sua inseparável cadeira de rodas, acompanhado de seu pai. Observei que ele empinva uma raia e fiquei admirado com a alegria estampada em seu rosto. A dificuldade em segurar o carretel de linha era minimizada pelo auxílio prestado por seu genitor.
- Brincando de soltar raia, né Felipe? - Falei.
Ele olhou para o lado, e soltando leve sorriso balbuciou algo como a dizer: não está vendo?
Conversando com seu pai fiquei sabendo que o sonho dele era soltar pipa, então ele o levou para realizar seu desejo.
Olhando atentamente para o céu pude notar a presença de mais duas pipas, e disse:
- Cuidado para não cortarem a sua raia, tem outras duas lá em cima.
O pai de Felipe me assegurou que as outras duas raias eram de dois amigos dele de sala de aula, e eles não estavam utilizando “cerol”, o que queriam mesmo era divertirem-se, vendo lá no alto, as raias livres para voarem de um lado para o outro.
- Ah, se todos que empinam pipas tivessem consciência de que o uso de cerol é proibido, muitos acidentes seriam evitados, inclusive o de se cortar com a própria linha. - Falei, despedindo-me dos dois, descendo rua abaixo e pensando comigo mesmo:
“Talvez Felipe, no seu inconsciente, se visse voando tal qual aquelas raias e se imaginasse livre da cadeira que o aprisiona”.

 

   
Conto publicado no livro "Contos de Verão" - Edição Especial - Abril de 2014