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José Antonio Silva Santos
Rio de Janeiro / RJ

 

Amigo fiel, amor verdadeiro


Em 1949, no interior do Espírito Santo, nasceu Jorge Palmares, caçula de cinco irmãos, descendente de uma família de fazendeiros influentes na região, que empregava boa parte dos moradores no cultivo do café. Jorge foi uma criança feliz naquele lugar, pôde ter uma vida alegre, livre dos perigos da cidade grande e sem apertos financeiros.
Aos dez anos de idade, os pais de Jorge já demonstravam uma preocupação a mais com ele, devido ao seu jeito excessivamente distraído; ele não conseguia nem ao menos aprender a ler. A família buscou por tratamento médico, onde foi diagnosticado uma doença degenerativa, com previsão de perda total da memória por volta dos vinte anos de idade, tornando-o incapaz de reter qualquer tipo de conhecimento ou sentimentos.
Jorge foi um adolescente rodeado de cuidados, várias vezes saiu da fazenda e perambulando pelos pastos, ficava sem saber voltar para casa. Pouco depois de completar vinte e dois anos, ele saiu mais uma vez, e desapareceu para sempre dos olhos de sua família.
Jorge Palmares passou bons anos vagando pelas ruas de várias cidades até chegar à Vila Velha, contava sempre com a solidariedade das pessoas, jamais pedia alguma coisa a alguém, na verdade ele quase nem falava. Infelizmente, conheceu também o lado sombrio do ser humano, muitas vezes foi surrado sem que tivesse feito nada para isso, no dia seguinte não se lembrava o que havia acontecido, via as feridas e simplesmente continuava sua caminhada sem rumo.
O destino conspirava para um encontro que faria as pessoas reverem seus conceitos de amizade. Jorge dormia em uma calçada qualquer, quando de repente acordou com algo se movendo encostado nas suas costelas, levantou o cobertor e viu um cachorrinho indefeso se escondendo do frio, não teve nenhuma reação, apenas voltou a dormir. Naquela madrugada o pessoal que distribuía sopa chegou, serviram uma deliciosa sopa, acompanhada de um pãozinho e um copo de suco. Jorge alimentou-se pela primeira vez naquele dia, e ao terminar colocou o recipiente no chão, o cãozinho começou a lamber o restinho da sopa que caíra no chão, e ambos dormiram profundamente logo após. No dia seguinte ele pegou seu cobertor e se preparava para sair, olhou para aquele cãozinho com um pouco mais de um mês de vida, e sem saber exatamente porquê, pegou e o colocou no bolso do paletó, o bichinho logo se ajeitou colocando a cabeça para fora, assim seguiram por muitos dias, até que o cãozinho ficou esperto o bastante para acompanhá-lo. O que se via era o cachorro guiando aquele homem, ele já conhecia os lagares onde lhes davam comida, quando recebia, fica eufórico latindo, mas só comia quando seu dono mandasse.
A dupla não tinha paradeiro certo, andavam de um lado para o outro, e quando anoitecia paravam numa calçada qualquer para dormirem. Quando o tempo mudava e a chuva ameaçada cair, o cãozinho acordava seu amigo e seguia latindo para um local coberto, João sempre o acompanhava. Tudo acontecia sempre da mesma maneira até que foram dormir em baixo da marquise do Hospital Maternidade, e logo na primeira noite uma funcionária levou comida para eles. O dia amanheceu e a rotina deles estava prestes a se repetir, mas havia uma sobra da comida, então o cãozinho se colocou em frente da comida e latiu pra João, que já estava caminhando, ele parou atendendo ao chamado do amigo, voltou e apanhou a comida e a água, e se foram. Nas noites seguintes, a marquise do hospital se tornou a hospedaria da dupla, com direito a banho e uma comidinha quentinha.
Os funcionários do hospital, carinhosamente chamavam João de Vô e o cãozinho de Bidu, todos achavam interessante a amizade dos dois e a forma como Bidu cuidava de seu companheiro. Todos os dias, assim que o dia clareava, Bidu acordava o Vô e saíam do local, voltando somente ao escurecer.
Num dia chuvoso de inverno, amanheceu, mas ambos permaneceram sob o cobertor. Bidu dormia com a cabeça apoiada sobre as pernas do Vô, que tremia de frio, um enfermeiro providenciou mais um cobertor e os cobriu. O enfermeiro estranhou eles permanecerem ali durante o dia todo, mas não comentou com os demais. Quando anoiteceu, mais uma vez, a funcionária que normalmente lhes levava a comida, o chamou para lhe entregar o alimento, mas ele não respondeu, então deixou a quentinha no chão ao lado deles. Nessa noite o movimento no hospital foi intenso, as ambulâncias não paravam, chegava uma após a outra, além disso, o frio também castigava muito. Lá pelas tantas da madrugada, quando o plantão acalmou, um enfermeiro foi para a área externa fumar um cigarro, na volta aproveitou para ver o Vô, então percebeu que a comida não havia sido tocada, e resolveu acordá-lo, onde pode constatar que ele queimava em febre e não atendia aos chamados. Enquanto Vô lutava pela vida dentro do hospital, Bidu corria de um lado para o outro do lado de fora procurando por seu amigo, olhava em cada rosto que entrava ou saía do hospital, como não via o amigo, continuava sua procura. Foram vários dias com os médicos tentando salvar a vida daquele homem, todo possível foi feito, mas infelizmente João não resistiu e faleceu. Bidu, como se soubesse o que aconteceu, parou de procurar pelo amigo, permanecendo triste e em silêncio, deitado no mesmo lugar onde costumavam dormir, não brincava mais, nem se alimentava também, até que uma enfermeira brigou com ele dizendo que o Vô não gostaria de ver ele sem comer, o cãozinho então levantou a cabeça, ficou de pé e comeu. Poucos dias depois, Bidu não se encontrava mais naquele lugar, ele simplesmente desapareceu e nunca mais foi visto.
Até os dias de hoje ambos são lembrados com carinho. O pessoal que trabalhava no hospital naquela época, e que teve o privilégio de conviver com o Vô João e seu cão Bidu, pôde presenciar uma grande demonstração de fidelidade e de um amor incondicionalmente verdadeiro.

 

   
Conto publicado no livro "Contos de Verão" - Edição Especial - Abril de 2014