Romilton
Batista de Oliveira
Itabuna / BA
Diferente
Junito nasceu numa noite meio clara, de céu aberto e sol
escaldante. Ele sentiu desde o ventre de sua mãe que seria
um menino frágil e marcado por um traço distintivo
biologicamente. Algo lhe faltaria que todos os seres humanos teriam.
Nasceu sempre sentindo-se inferior pela ausência desde algo
que lhe faltava e que todos ao seu redor tinham. Tentou conviver
com este problema, mas faltavam-lhe as condições
necessárias para que ele se sentisse valorizado e como
indivíduo normal. Ele achava que mais ninguém tinha
este seu defeito. Achava que era o único, mas também
nunca ouviu alguém se pronunciar. Acho que como ele, todos
os que tinham o mesmo problema se silenciaram, formando uma sociedade
secretamente trancada em seu silêncio. Por causa deste problema,
ele, a cada ano que passava, sentia-se enclausurado dentro de
seu mundo perversamente interior. Teve vários amigos, mas
a nenhum lhes contou seu íntimo segredo. Teve várias
namoradas, mas a nenhuma delas se sentiu pronto para descarregar-se
de seu fardo afetivamente incômodo.
Durante a sua infância foi acometido por uma enfermidade
que lhe tornou mais ainda sensível e fugidio. Por muito
tempo foi observado por uns que os estranhavam por não
ter amigos e nem mesmo namorada. A sociedade preconceituosa logo
se levanta nesta hora, pois quem não anda conforme seu
comanda bom sujeito não é. E a infância passou,
e logo veio a sofrida adolescência, acompanhada de mais
sofrimento. Um menino marcado por dores e doenças que se
lhe apresentavam. Até que veio a pós-adolescência
e ele descansou de suas dores, mas continuava lá, clandestina
e silenciosa, a incompletude que lhe veio após alguns dias
de seu nascimento. Um insolente e indesejável acidente
acontece: sua irmã o derruba de seu colo. Daí nasceu
o seu grave problema que lhe acompanharia o resto de sua vida,
e lhe faria ser, segundo o seu ser, uma pessoa incompleta, diferente,
marcada por um sinal de memória traumática, dando-lhe
uma identidade insegura e uma representação biológica
que lhe enfraquece em sua essência também preconceituosa.
Um dia, depois de tantas idas e vindas, ele finalmente confessou
a um amigo seu, pastor de uma igreja evangélica, homem
virtuoso e valoroso: um ouvidor, uma escuta que foi necessária
em sua vida, fazendo com que seu fardo por alguns dias saísse
de suas costas. O menino sentiu-se tocado por uma força
misteriosa e divina, que neste momento fica sem representação
por falta de palavras que possa explicar tal fenômeno. Conseguiu
manter-se nesta ideologia cristã por alguns anos, até
que mais uma vez, o sinal veio a lhe perturbar, impedindo-lhe
de pertencer a uma comunidade que ele muito estimava. Resolveu
então, depois de tantas buscas, focar sua vida nos estudos,
um refúgio necessário para amenizar as suas dores.
O sangrado menino pela vida, agora é um homem crescido,
responsável, pronto para vencer os obstáculos que
a vida possa oferecer-lhe, mas infelizmente, continua ainda incompleto,
inseguro e frágil, diante de tantas angústias que
ele presenciou em sua existência. Está mais maduro,
sério e compromissado, mas tomado ainda por uma ruptura
que lhe invade seu mundo interior, vasto, sombrio, melancólico,
tempestuoso, frio, imparcial, meticuloso, assustador, inseguro,
líquido, fugidio, nefasto, partido...
Como uma marca imposta ao seu corpo, ele às vezes a compara
com o sinal ou marca que Deus permitira ficar no apóstolo
Paulo para que ele nunca se desviasse de sua visão, de
seu foco, para que ele não se desviasse de seu povo, de
sua história, de seu destino. Será que este menino
adulterado pela vida é a repetição e a diferença
desta história ou será mesmo uma causalidade do
descuido de sua irmã que, na fraqueza de equilíbrio,
cometeu o acidente? A intencionalidade é fugidia. Não
se fez parceira da ação. O tempo, o espaço,
as manobras da intensidade, as quebras de estruturas, as obscuridades,
o devaneio, o despreparo psicológico, os traumas, os sinais,
as manobras do destino, são também vítimas
das circunstâncias, vítimas sem escuta, sem portador.
No final, resta-nos a certeza de que a vida é uma densa
e rápida passagem. E que nós somos sobreviventes
deste grande mundo global e deste extenso e complexo mundo interior
que aprisiona tantos e tantos indivíduos.
A história deste menino-homem é a história
de tantos homens e mulheres que se espalham pelo mundo afora,
com seus dilemas, seus quebrados desencantos com a vida, histórias
legitimadas pela dor, ruptura, escape. São personagens
verdadeiramente líquidos, mas solidamente consistentes
em suas caminhadas desestruturadas de suas antigas fontes ou formas
de ser completo e seguramente fixo, determinado e dominado por
estrutura montadas psicológica e socialmente.
Posso, como narrador humilde desta história, dizer-lhe
qual o sinal que marcou a vida deste menino-homem, mas a realidade
da multiplicidade imaginária da ficção que
ronda os acontecimentos da humanidade presente fala por si. Cada
leitor dentro de sua sapiência saberá descobrir dentro
de sua contextualidade tradicional, moderna ou pós-moderna
a marca enigmática biológica que faz parte do cotidiano
deste visível personagem, homem de dores, mas também
de amores, de conquistas, desafios. Um menino-homem especial (ou
uma mulher também especial) que se encontra em uma dessas
esquinas da vida, labutando, cantando, sonhando, traumatizando
seu implacável trauma como amigo genial que lhe dá
sentido, lhe constrói. Completa sua evasiva forma de ser
e estar no mundo, “mundo, vasto mundo”, como anunciou
o poeta.
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