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Marcel de Carvalho Ribeiro Dias
Rio de Janeiro / RJ

 

Estação de emoções



Olaria fervilhava sob o sol do verão, estação das fortes emoções, segundo a versão de gente que vivia bem longe do marasmo e do insuportável calor suburbano. Para mim e meu colega Flávio, nada de emocionante, apenas a preguiça de uma tarde em que nada havia a fazer, a não ser travar uma conversação entrecortada por muitos silêncios.
A desanimada conversa foi interrompida, pois nossa atenção se voltou para uma garota, que passava de bicicleta. Flávio mexeu com ela. Deu certo: ela parou a bicicleta. Sorriu. Apresentou-se:Biga. O suficiente para deixar a conversa mais animada.
Foi apenas o começo. Sem muito que fazer, nem muitos amigos (Flávio os tinha em maior número, era relativamente popular, ao passo que eu, o “nerd” da turma, era solenemente ignorado), formamos um trio quase inseparável. Nos encontrávamos praticamente todos os dias, seja para sair, seja para ficar na casa de Flávio, cujos pais passavam o dia inteiro na rua, o que dava a ele uma liberdade invejável, da qual Eu e Biga (Abigail, nome que ela detestava) nos aproveitávamos.
Um dia, fomos à praia. Horas felizes sob o sol. Voltamos para a casa de Flávio.Os três, a sós. Que tal uma bebida? Biga aceitou, sem relutância, e eu simplesmente me deixei levar assim como, depois de um pouco alterado, aceitei o cigarro que Flávio e Biga fumaram e me ofereceram.
Dei a primeira baforada. Logo me veio um violento acesso de tosse. Biga e Flávio caíram na gargalhada. Eu te mostro como se fuma isso aqui, disse Flávio.
Aprendi depressa. Fumei, e logo caí num torpor que achei desagradável (tanto que não repeti a experiência), torpor que deve ter-se transformado em sono, pois me lembro de ter acordado depois de algum tempo.
Escutei barulhos vindos do quarto de Flávio. Movido pela curiosidade, aproximei-me.
Então os vi.
Flávio e Biga, pela porta entreaberta, aos beijos e carícias, os corpos entregues um ao outro. Chamaram-me a atenção os contornos do corpo de Biga, os seios, a pele clara, a expressão de prazer no rosto dela. E os gemidos desconexos, os movimentos, a espécie de loucura prazerosa que deles se apossava, o alheamento de tudo – inclusive a minha presença, que não tive coragem de manifestar.
Retirei-me em silêncio, ruminando imagens,que só surtiram efeito mais tarde. Estava em casa, debaixo do chuveiro, relaxado, a mente a vagar, sem foco, até deter-se nas então recentes lembranças. O relaxamento cedeu vez à excitação, maior à medida que me vinham mais recordações do que vira, e acabei atingindo um solitário clímax.
Desliguei o chuveiro. Respirava fundo, entrecortado, como se me faltasse ar. Saí do Box, olhei-me no espelho. Não gostei do que vi, o rosto cheio de espinhas, certo ar de tolice, a expressão culpada, mas, sobretudo, o que via à minha volta: a solidão que me cercava, o abismo, que me parecia intransponível, entre mim e o outro, qualquer outro. Sozinho no banheiro, chorei, de início um choro contido, depois mais copioso, interrompido pelo chamado de minha mãe para o jantar.
Nunca disse a eles o que havia visto, mas nosso relacionamento mudou. Embora continuasse a vê-los e a sair com eles, tornara-me, na presença dos dois, mais reservado e silencioso. Eles notaram e reagiram à mudança. Primeiro fizeram troça, depois me perguntaram, mas respondia com evasivas.Sentia-me constrangido, não só pelo que vira, mas também pelo desejo que passara a sentir por Biga (a visão da nudez dela gravada na memória) e a sensação de estar atrapalhando um namoro, que, na verdade, nunca aconteceu, apesar de Biga querer. Flávio não queria nada mais do que teve, e pude notar que se estabelecera, entre eles, certa tensão, assim como entre mim e eles. Panela de pressão que, deixada descuidadamente no fogão, acabaria por explodir.
*
A festa de aniversário de Flávio estava animada. Até eu, tão tímido, consegui ensaiar desajeitados passos de dança e até mesmo me aproximar das garotas, com algum sucesso (uns beijos, nada demais, mas, àquela altura de minha vida, muito mais do que havia conseguido antes). Pairando nas nuvens, demorei a reparar no que acontecia: Flávio e Biga discutiam; trocaram palavras ásperas, ela acusando-o de beijar outra, ele retrucando que não tinha nada com ela, que poderia beijar quem quisesse. A altercação durou alguns minutos, ao fim dos quais Biga começou a chorar.Flávio saiu.
Indignei-me com a atitude dele, e o segui. Discutimos acaloradamente, chegando às vias de fato. Mais fraco, fiquei em desvantagem. Apaziguadores entraram em ação, e nos separaram.
Saí da festa cabisbaixo e irritado. Biga retribuiu-me a solidariedade: saiu de lá comigo. Bom cavalheiro, acompanhei-a até o portão de casa. Foi o trajeto mais silencioso de minha vida. Biga tentou conversar, animar-me. Esforço inútil. A solidariedade dela chegou a mim muito menos como sinal amizade do que simples pena do mais fraco. O sentimento de humilhação era invencível.
Cumpri minha obrigação de cavalheiro, e despedi-me dela com poucas palavras e um beijo amigável, pois intuí (ou o sentimento de impotência me fez sentir assim) que dela só poderia ter mesmo amizade, e talvez isso me bastasse .
E realmente bastou, ou nem isso. O episódio da festa marcou meu afastamento definitivo de Flávio, a quem não retornei ligações nem me dispus a uma conversa, talvez menos por rancor do que por orgulho ferido, ou mesmo por perceber que nossos laços de amizade não eram mesmo muito fortes .
A amizade com Biga esfriou, mas permaneceu até ocorrer o acontecimento mais esperado por mim: passei nas provas para uma instituição militar de ensino e fui estudar fora do Rio de Janeiro.
Assim, Olaria foi ficando para trás, limitada às visitas que fazia aos meus pais. Afastei-me do calor insuportável e do marasmo suburbano. A vida ficou mais interessante, pois o adolescente introvertido e ingênuo que eu era foi, aos poucos, criando coragem e entregando-se à vida, sem jamais esquecer aquele verão, há tantos anos passado, que me provou estarem certos os que dizem:
O verão é a estação das emoções.

   
Conto publicado no livro "Contos de Verão" - Edição Especial - Abril de 2014