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João Francisco Lins de Maciel Borges
Belém / PA

 

Eutanásia



Jéssica e Victor apaixonaram-se quando ambos tinham apenas doze anos. Foi uma paixão arrebatadora, daquela que leva a um estado psíquico de manifestação sentimental indescritível. Não se importavam com nada que fosse alheio ao mundo particular que criaram.

Com dezesseis anos, passaram a conviver maritalmente na casa da mãe de Jéssica, uma viúva livre de qualquer preconceito.

Passando no vestibular, Jéssica foi estudar medicina e Victor, psicologia.

Planejavam ter filhos somente depois de diplomados e com empregos que lhes dessem independência financeira.

Sempre que tinham oportunidade gostavam de abordar assuntos comuns aos seus estudos.

Certa noite, eles abordaram um tema polêmico envolvendo a eutanásia, vocábulo de origem grega (eu + thanatos) que, em conceito bem simples, significa “boa morte” ou “morte sem dor física”.

Fiel à sua orientação religiosa, Jéssica, em hipótese alguma admitia a prática da eutanásia, pois somente Deus tem o poder de dar e tirar a vida de sua criatura do modo e na hora que bem entender. Vai mais além, sequer aceitando a ortotanásia que é a retirada dos fármacos e o desligamento dos aparelhos que estão prolongando a vida vegetativa de alguém.

Victor, como ateu, advogava que a própria pessoa é dona dos atos concernentes a ela e, assim sendo, tem o direito de morrer com dignidade quando achar que não valha mais a pena viver em sofrimento intenso. E, a pedido do paciente, qualquer um tem o dever de abreviar o sofrimento daquele seu semelhante portador de doença incurável e irreversível, por ser, inclusive, um ato de bondade e nobreza.

O tempo passou. Jéssica e Victor diplomaram-se e conseguiram os empregos que aspiravam. Casaram-se sem cerimônia alguma. Adquiriram um confortável apartamento. Agora, sim, o nascimento do herdeiro era bem-vindo.

Todavia, uma tarde de inverno reservou um evento inesperado. Jéssica saiu do trabalho e, na direção de seu carro, retornava ao lar, quando sofreu um grave acidente de trânsito.

Foi hospitalizada, em estado de coma, com um diagnóstico nada promissor. Lesão total e irreversível das quarta e sexta vértebras cervicais da medula espinhal. Infelizmente, a jovem médica vai conviver com a tetraplegia. Terá que ser assistida continuadamente por alguém que terá a responsabilidade pela sobrevivência da paciente durante o resto de sua vida.

Jéssica, com apenas vinte e cinco anos de idade, tornou-se uma cadeirante, com os quatro membros paralisados e a perda do controle motor e da fala. Felizmente, seu cérebro foi preservado. Mobilidade, ainda que parcial, só na cabeça que a movia para simplesmente responder a alguma pergunta com “sim ou não”.

Durante o dia, Jéssica era assistida por sua mãe. Quando Victor chegava do trabalho, assumia o encargo que realizava com muito amor e desvelo.

Passaram-se quinze anos. A mãe de Jéssica morreu e uma enfermeira a substituiu. Victor envelheceu na proporção de três anos em um, afora o cansaço e a tristeza de ver morrendo, aos poucos e numa cadeira de roda, a única mulher que conheceu e amou na vida.

Como fazia diariamente, Victor tentava conversar com Jéssica, perguntando sobre coisas diversas e obtendo por resposta apenas um “sim” ou “não” através de um quase imperceptível levantar, baixar ou mexer para os lados lentamente a cabeça. Pela convivência, o casal conseguia conversar dentro dos limites.

Sempre que podia, Victor levava Jéssica ao parque da cidade, onde ficavam horas olhando as árvores e ouvindo o canto dos pássaros. Aí, vinha à lembrança o tempo em que, como crianças, passeavam felizes e faceiras de mãos dadas. De fato, o tempo não parou!

Numa das vezes, retornando ao apartamento, Victor observou que Jéssica estava triste, pois lágrimas corriam espontaneamente de seu rosto.

Jéssica, respondendo com a cabeça a inúmeras perguntas de Victor, disse que sua alma estava infeliz ao ver os seus e os sofrimentos do seu amado. Não mais queria viver sentada em uma cadeira de roda e na dependência de tudo e de todos. Por fim, implorou a Victor para dar cabo à vida dela, pois nem mesmo tinha condições para se matar.

Perplexo, Victor não concordou com a pretensão de Jéssica. Sem bem que fosse a favor da eutanásia, não teria coragem de praticar em sua própria mulher. Da teoria à prática, há muita diferença. Jéssica afirmava constantemente que, se ele morresse, não viveria um minuto a mais, pois era como se lhe arrancassem o coração e levassem seu espírito.

Victor já não aguentava tanta pressão psicológica e entrou em depressão. E, neste estado patológico e mental, começou a questionar sobre o pedido de sua mulher.

De fato, se até um cachorro é abatido para poupá-lo do sofrimento, o que dizer de um ser humano? Será que uma pessoa sofrendo atrozmente deverá ser tratada de modo diferenciado e abaixo da dignidade de um animal irracional?

O ato criminoso não está em oferecer ao ser humano uma morte indolor. O crime está, sim, em deixá-lo sofrer indefinidamente como vítima ou cobaia do avanço da medicina. Mas, Victor conseguiria viver sem a presença de Jéssica?

Toda noite, deitado ao lado da esposa, Victor questionava-se sem cessar: “mas será mesmo verdade que, se eu morrer, ela morrerá logo depois”? Inopinadamente, acordou Jéssica e, sem dizer nada, sentou-a na cadeira de roda. Seguiram para a cozinha.

Pela manhã, chegou a enfermeira. Abrindo a porta da área de serviço, deparou com uma cena dantesca. Enforcado com uma corda de náilon do varal, Victor jazia nos braços de Jéssica, também morta, sentada em sua cadeira de roda. A face do casal demonstrava felicidade, serenidade e paz.

Agora, Victor e Jéssica estão livres para, sem dor nem sofrimento, viver um infinito amor na esfera espiritual.



   
Conto publicado no livro "Contos de Verão" - Edição Especial - Abril de 2014