Beto
Acioli
Recife / PE
As duas faces do baralho
...Panelas velhas, quatro mesas, dezesseis cadeiras, alguns engradados
de cervejas e de refrigerantes entre outros cacarecos, foi tudo
que João lucrou pelos seus vinte e cinco anos de trabalho
como garçom num requintado e famoso restaurante da capital
pernambucana.
João, menino franzino, nascido em Limoeiro, interior de
Pernambuco, chegou ao Recife aos 10 anos de idade e começou
a trabalhar muito cedo para ajudar seu pai que era vendedor ambulante,
vendia refrescos nos entornos do Mercado de São José.
Sempre com um sorriso no rosto mal percebia as dificuldades pelas
quais passava, só pensava em ser algo na vida e seu foco
era trabalhar. Nem mesmo frequentava a escola ou brincava com
os demais garotos da sua idade, pois às 7 da manhã
já estava no batente e só retornava pra casa na
boca da noite. Nos fins de semana, seu pai o recompensava com
algumas medas e João, sempre dedicado, usava suas poucas
moedas para comprar o próprio refresco que vendia. Ficava
fascinado ao ver o gelo flutuando e tilintando no copo, pois antes
de chegar ao Recife não conhecia o gelo, parecia ser coisa
de outro mundo. E era mesmo, afinal o mundo que ele vivia ali
era bastante diferente do que vivera outrora, no interior de onde
viera.
Ao longo da sua juventude, João, mesmo analfabeto, sentia
seu tino para os negócios, conhecia bem os números,
e lidava bem com a aritmética. Seu sonho era ter seu próprio
negócio, mas percebia que esse sonho estava distante da
sua realidade. João passou por diversos trabalhos: foi
caseiro, camelô, pedreiro e sapateiro, mas nenhuma dessas
profissões parecia ser pra ele o que ele queria, mas encarava
qualquer trabalho que lhe garantisse a sobrevivência, até
que um dia foi convidado para trabalhar como garçom num
grande e famoso restaurante que aceitara de pronto.
João parecia ter acertado na profissão que escolhera,
estava sempre de bem com a vida e atendia sua clientela sempre
com alegria, agradava a todos, inclusive ao proprietário,
que percebia os sinceros elogios que João recebia dos que
ali frequentavam.
Por vinte e cinco anos, João se estabeleceu como garçom.
Nesse ínterim casou, conseguiu comprar uma casinha, mobília
e constituiu uma família, porém as coisas já
não iam tão bem como fora no começo. Ryan,
seu patrão, viciado e jogos de cartas, estava passando
por grandes dificuldades financeiras e sua clientela já
não era a mesma. Suas dívidas ultrapassavam seus
ganhos chegando ao ponto de atrasar os vencimentos do pessoal
que trabalhava no restaurante. Tudo ali mudara, exceto o sorriso
no rosto de João que parecia ter congado no tempo. Mesmo
sem receber seu salário em dia e passando por dificuldades
em casa, ele não deixava suas preocupações
transparecerem e atendia sempre com a mesma alegria de antes.
Alguns funcionários, inconformados com o atraso de seus
vencimentos pediram pra sair e outros tantos foram à Justiça
para exigirem os seus diretos, o que dificultava ainda mais a
situação de Ryan e dos que permaneceram trabalhando.
Entre uma sentença e outra o restaurante chega ao caos
e é obrigado a fechar. Sem ter como pagar a João
e mais dois funcionários pelo seu tempo de serviço,
Ryan resolve entrar num acordo para que eles não fossem
à Justiça e decidem dividir o que restara do Restaurante:
toda a baixela, um fogão industrial, mesas, cadeiras e
engradados de cervejas e de refrigerantes dentre outros utensílios...
João lamentava a falência de Ryan, mas compreendia
que seria quase inútil ir à Justiça, pois
sabia que o vício do patrão, embaralhara toda sua
vida. Não havia mais dinheiro pra nada, Ryan estava triste,
falido e deprimido.
A princípio, João tentou vender tudo que lhe fora
dado por Ryan como indenização, mas, pra sua sorte,
não conseguira vender. Decide então usar o que lhe
fora herdado, esse era o seu desafio.
João não sabia cozinhar, mesmo assim teve a ideia
de fornecer marmitas para os funcionários das pequenas
empresas que se situavam pelas cercanias de sua residência
e assim fez. De porta em porta, de boca em boca ele ia fazendo
sua propaganda. A comida não era tão boa, mas a
simpatia e o sorriso de João pareciam mágicos e
ele, aos poucos ia conseguindo sua própria clientela. Chamava
a todos de Lustroso ou Lustrosa e assim todos também passaram
a lhe chamar.
No começo, como em tudo acontece, tudo era muito difícil,
mas ele não desistia, acreditava no seu sonho e trabalhava
com todo afinco.
Passados alguns meses ele resolveu, em sua pequena residência,
abrir um pequeno barzinho. O espaço era pequeno, mal cabiam
as quatro mesas com as dezesseis cadeiras. Ele era muito criativo,
decorou todo o barzinho com seu dom nato e batizou os pratos que
fazia com nomes bem curiosos, chamavam atenção,
não pelos ingredientes, mas, sobretudo pelos nomes que
os davam. Em seu cardápio constava: Lagosta enlatada, cantora
chorona, peixe acocorado, etc...
Dia a dia ele cozinhava, inventava pratos, experimentava seus
temperos e, aos poucos, como um bom autodidata ia se aperfeiçoando
naquilo que aceitara como desafio. Acertara no prato que criou
chamado Peixe acocorado, que era um simples peixe ao molho de
coco. (Como podia um peixe ficar de cócoras?) Era o prato
mais pedido, somente pela curiosidade em ver um peixe acocorado.
Sendo assim ele decidiu dar um nome ao seu negócio e colocou
uma placa na frente do barzinho: “Peixe acocorado do Lustroso”
o que chamava mais atenção ainda pelos que ali passavam
de pés ou de carro.
Entre erros e acertos, João criou uma vasta experiência
e se estabeleceu em seu negócio. Aprendeu a cozinhar e
sua cozinha que se destacou entre as melhores da região,
chegando a ser noticiada na imprensa escrita e falada e também
a fazer parte do guia turístico e gastronômico de
Recife.
Humilde, como sempre, João permanece no mesmo lugar que
começou seu negócio, usa as mesmas panelas, mesas
e utensílios, anda a pés, de chinelos e também
dá guarida a Ryan que é empregado em seu barzinho
onde consegue pagar seu aluguel e tirar o sustento da sua família.
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