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Teresa Cristina Cerqueira de Sousa
Piracuruca / PI

 

  O caixão do Intendente suicida

 

   

   Era noite de 15 de julho e, como de costume, a cidade estava repleta de visitantes para a última noite do novenário da padroeira Nossa senhora do Carmo. As mulheres usavam roupas de dias de festa, cabelos bem penteados e os sapatos de saltos finos eram os mais movimentados no chão da praça. Como ficavam bonitas as saias balançando quase rente aos pés femininos! Pareciam que estavam cheias de asas ou de uma energia vindas das pernas das mulheres. Mas, na verdade, eram todos os presentes que tinham muito agitação, e uns passantes perguntaram de repente: “Que aconteceu? Por que todos estão saindo da praça?”.
A agitação era também dos olhares, dos gestos, das vozes que encheram a rua à frente da igreja, rodeando os familiares do Intendente João Brito.  Perguntavam se o corpo dele tinha mesmo desaparecido do pequeno cemitério que fora construído aproximadamente há um mês com o firme e único propósito de guardar os restos mortais do administrador da prefeitura local. Tratava-se de um caso de pessoa que se suicida e, como era de conhecimento geral, não podia ser enterrado no cemitério público – que as pessoas do lugar acreditavam que a alma do morto poderia durante à noite vagar pela cidade em busca de novas pessoas suicidas.
D. Isabel, viúva do finado, sentada em uma cadeira – que prontamente alguém lha ofereceu – em frente à igreja, chorava baixinho, sem escândalos, com uma das mãos sobre o peito esquerdo, olhando baixo para os conhecidos mais próximos, em sua maioria mulheres.
Seus dedos eram um tremor e a mão que estava sobre o seio foi se juntar à outra que segurava um terço. Quase não se ouviam os lábios: e aquela gente toda sabia que a mulher rezava uma ave-maria. Encostada a ela, uma menina cochichou-lhe algo e a senhora se levantou. Era uma pessoa de uns cinquenta anos e caminhou segura, mas de cabeça ainda baixa, até o cemitério no fim da rua. A igreja tinha a porta principal para a rua, que desembocava no cemitério local; era a Rua da Goela!
Caminhava em passos de sentimentos fúnebres: os pés tinham um ritmo calmo com o que foram seguidos pelos demais curiosos. E, seguidamente, envolveu-se um rumor nessas pessoas de que os empregados do finado haviam construído, soturnamente, durante a derradeira semana, paredes dentro do cemitério público rentes a suas larguras – que fizeram suspeitas até de que os muros estivessem rachados justificando, desse modo, tal atividade da família do Intendente.
— Calem-se, seus fofoqueiros! — ouviu-se de uma voz de pessoa já velha no meio da multidão.
Os gatos e os cachorros da rua esconderam-se pelos buracos das muralhas velhas das casas antigas. Há quanto tempo andariam essas pessoas com essas suspeitas? Com o terço nas mãos, D. Isabel insistia em não conversar com ninguém. Somente a menina recebia um franzir de sobrancelhas de vez em quando. E como o corpo do Intendente João Brito fora sumir da sepultura? Era um túmulo familiar e, afora os parentes próximos, não havia visitações. Apenas um empregado; e este cuidava que estranhos não entrassem lá para ver o caixão exposto, mesmo em dias de rezas na capelinha ligada ao sepulcro dentro do cemitério de propriedade particular.
A animação pelo novenário, que ocorria todos os anos, deixou de ser a atenção dos piracuruquenses. Não havia, neste interim, vivalma, dentre os que seguiram D. Isabel, que não tivesse uma curiosidade no alvoroço dos pensamentos. Era um caso sério e sem precedentes na pequena cidade. Pareciam dizer que durante anos, repetiriam aos filhos interminavelmente daquela noite, que seguiram em cortejo a esposa do finado Intendente até o cemitério local por uma rua semiescura. Havia coisas que não se questionavam por se saber a resposta: naturalmente se o corpo sumira de um cemitério deviria estar em outro local – o cemitério público.
Oh! há de se viver muitos anos para se contar a netos e bisnetos deste dia! Era o que se entedia nos murmurinhos quando se prestava atenção ao que diziam as pessoas umas às outras. Não se pouparam comentários maldosos de que os parentes do defunto tinham-no enterrado nas paredes agora bem largas do cemitério. Teria sido de pé? Ou deitado? E nada melhor que num dia em que a população estaria em peso na igreja – sem curiosos nas calçadas de suas casas. Por que D. Isabel estaria na missa sem os dois filhos? Não eram todos tão religiosos? Sempre cuidando da mãe... E esta com seus rebentos rezando pela alma do falecido... Talvez Deus tivesse compaixão e o deixasse entrar no Céu... E fora enterrado em lugar separado na cidade...! Há coisas mesmo que não se dizem, fazem-se... Será? É a língua e os pensamentos duvidosos que deixam o homem ser um pecador. Por isso, não haveria fim para mais e mais pensamentos...
Isso foram ideias que passaram pela cabeça dos fiéis de Nossa Senhora do Carmo por longos dias e anos. Os filhos e a esposa de João Brito afiançaram que nada sabiam ou souberam de onde o corpo fora parar. O padre jurou pela Santa que o cemitério necessitava realmente de ter suas paredes mais protegidas, daí a explicação de os muros terem sido reforçados e que essa ação fora de longa data uma intenção do finado Intendente João Brito. D. Isabel até pediu perdão a Deus, pelo povo crer que ela mentia; outras vezes, ela mesma dissera que mandaria fazer uns reparos na entrada do cemitério para dar continuidade aos projetos do finado. O povo teve de aceitar as explicações para que a cidade voltasse a ter calma dantes.
Oh! mas isso já estava esquecido num cemitério em que nem lugar para defuntos não havia mais!
E Piracuruca continuou sendo uma cidade com suas festas religiosas sendo muito frequentadas... E muitos de seus moradores nem sabem do fato histórico do suicídio do Intendente João Brito e posterior desaparecimento do caixão...!

 

 
 
Conto publicado no "Histórias (incríveis) da meia-noite" - dezembro de 2016