Maria Rita de Miranda
São Sebastião do Paraíso / MG
Corajoso?
Tudo em paz na empresa que fornecia energia elétrica para a pequena cidade do interior de São Paulo, até que um incidente mudou a vida de João, um dos funcionários.
João, Giba e José eram amigos dentro e fora da empresa. Nenhum dos três era natural de Passa Quatro, o que os unia mais. Dividiam o aluguel de uma casa ampla e levavam uma vida de muito trabalho, mas também repleta de diversão. Nos finais de semana eram duas as opções: ou saíam para um bar e se encontravam com outros amigos para uma noitada ou ofereciam a festa em casa. Estas eram melhores. Convidavam algumas garotas e a diversão estava garantida. Ouviam música, dançavam, bebiam e conversavam muito até altas horas.
Giba era o mais falante e conquistava a todos com causos que sempre eram contados com uma dose adequada de humor e exagero. João era considerado o mais corajoso, apesar de que ninguém sabia até que ponto. José, um tanto quanto tímido, ganhava ar de confidente.
Certo dia, José teve que viajar a serviço para uma cidade vizinha. Voltaria à noite não fosse um acidente que lhe ceifou a vida.
Giba e João foram imediatamente avisados. O descontrole foi geral. Naquele lugarejo tinha uma pequena funerária, mas não o carro para a remoção do corpo. Giba não teve dúvidas, chamou João e lhe disse: - busque nosso amigo. Eu empresto a belina. É antiga, acabada, mas aguentará a viagem e caberá folgado, um caixão. Para isso, basta deitar o banco traseiro.
-Mas eu, Giba? Então venha comigo.
-Impossível. Tenho que acertar os demais detalhes, avisar a família e solicitar a vinda, da cidade dele, de um carro funerário.
-Mas...
-Você não pode lhe negar esse favor. Cara é o José, nosso amigo.
Desconcertado João concordou. Sairia logo para voltar antes do cair da noite. Medo? Nem pensar. Ele era corajoso.
Chegando à cidade, depois de uma verdadeira chuva de perguntas da polícia e do hospital, o corpo foi liberado. Demorou mais do que devia. Já estava anoitecendo.
Ao ganhar a rodovia deserta, o desconforto tomou conta de João. Primeiro não parava de olhar pelo retrovisor. Ligou o rádio. Achou que a música era uma falta de respeito ao amigo. Desligou, ligou, desligou.
Foi então que começou um diálogo, para passar o tempo, com o morto. Virava sorrateiramente para trás e dizia frases como: “você está melhor do que nós” ou “como foi acontecer isso?” ou ainda “que falta sentiremos de você”. João cantarolou procurando desviar a atenção. Nada adiantava. Acendeu a luzinha interna do carro e apressou a viagem.
Ao chegar a Passa Quatro, amigos e familiares de José já estavam à espera. Muito lamento, choro, despedidas e José foi levado para ser enterrado na cidade natal.
A noite foi longa para Giba e João. Não dormiram e João se recusava a falar sobre a viagem. Praticamente emudeceu.
Nos dias seguintes, Giba notou que João se comportava estranhamente. Em casa ou no serviço, reparou que o amigo não dava três passos sem olhar para trás. Resolveu lhe perguntar: - João, o que está acontecendo com você? Por que olha tanto para trás?
-Eu?
-Sim, três passos e vira a cabeça. O que está havendo?
-Amigo, eu tenho que admitir. Desde a viagem para buscar o José, eu o sinto atrás de mim, como na belina. Penso que a qualquer hora ele vai encostar-se a mim. Então me viro, não vejo nada, mas essa sensação não me abandona.
-Ei João, você não é tão corajoso assim! Medo de alguém que já se foi?
-Admito. Estou com medo. Vejo sombras. Escuto barulhos. Vou tirar umas férias, voltar à minha cidade para ver se, de longe, esqueço-me de tudo isso.
João não só partiu. Demitiu-se do emprego e nunca mais voltou a Passa Quatro.
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