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Romilton Batista de Oliveira
Itabuna / BA

 

Carta de um poeta pensador


Ele era um sujeito que pensava a vida com uma liberdade de ouro. Ele era um cidadão que pagava impostos e não entendia porque o necessário faltava a toda sofrida gente de seu país. Ele era António, Pedro, Marcos, Lucas, Santiago, Romeu, Tadeu, Bartolomeu e tantos outros nomes que carregavam dentro de si uma soma de ingredientes religiosos cruzados por elementos históricos de uma humanidade que cresce em tamanho desespero digital. Ele não era estrangeiro, mas sentia-se às vezes um estranho em seu próprio território. De sua janela filosofal ele avistava homens e mulheres que faziam da vida um estranho limite de vida sem sentido, homens e mulheres que se estragavam em seus muros de ideias vencidas e aprisionadas. Ele era um homem comum apesar de sua estranha forma de ver o mundo de sua lente pessoal. Escrevia versos como quem toca no violão os amarrados sons que encantam a vida do sertanejo nordestino pioneiro brasileiro. Ele era o compadre que pulava a santa fogueira da tradição, cantava cantigas de rodas e dançava com o seu jeito peculiar de ser movimentos vanguardistas de um Brasil libertado de sua escravidão. Ele era um homem de sentimentos, pensamentos, idealizações, criações. Chorava com uma delicadeza de um algodão perfumado. Pensava com uma fórmula que fazia das palavras um rio de afluentes de signos azuis. Idealizava um mundo de sonhos, sem amarraduras, canhões ou subalternizações. Criava versos com a coragem de uma estrada ainda não percorrida. Era um poliglota. Tinha dentro de si um amontoado de línguas que lhe construía o seu mundo imaginário, quando presenciava as cenas que lhe fazia partir o coração. Não suportava ameaças, fome, loucura, desespero. Era um sujeito de explosiva comoção. Dominado por uma subjetividade que lhe fazia caminhar por estranhas terras de Ninguém ou Sábio Segundo Algum Mundo, ele sentia a dor de todo o Mundo porque via através de seus transparentes olhos o sofrimento do Grande Mundo de Meu Deus. Era um humilde homem chamado Sábio Descentrado Humano Do Devir-a-Ser. Ninguém pensava como ele, ninguém sorria como ele, ninguém percebia que este homem era um poeta descalço de sua época, um poeta vestido de novos trajes que nem o Ocidente nem o Oriente ousou um dia usar. Ele era um homem sem cor, sem identidade, sem representatividade. Um homem em movimento, um homem que não carregava dentro de si nenhuma afinidade com esta humanidade feita de determinações, combinações, fixações. Ele era um poeta pensador. Pensava em forma de dor, em forma de cor, em forma sem forma, em forma deforma. Pensava com as mãos, os pés, o coração, o chão, o tempo. Pensava fora da razão e da emoção. Escolhia as frases fora de ordem e de maturidade. Preferia a descontinuidade à continuidade. Detestava os binarismos. Odiava os aplausos, as falsas conversas, os belos amigos, as festas marcadas, os sonhos vendidos, os homens bem vestidos de roupas copiadas na força da opressão ou da mera gratidão de uns para com outros. Sempre gostava de andar nos trilhos do perigo. Amava ouvir os velhos, os amontoados embriagados, os deserdados, os loucos, os subalternos, desprezados da sociedade, rejeitados da classificação das aparências superficiais dos homens ditos “normais”. Preferia a noite porque ela trazia o silêncio que falava muito mais do que o grande barulho do ensurdecedor dia de labuta. Preferia sempre caminhar de olhos bem abertos para ver com os olhos bem fechados aquilo que o seu coração não conseguia decifrar na vida dos homens que escravizam outros homens naturalmente. Cantava não para afugentar os males, mas para movimentar a vida de ritmo e beleza. Escrever era o seu mais predileto refúgio. Escrevia para se libertar de algo que lhe aprisionava. Escrevia para dar liberdade a outrem. Escrevia para chamar a atenção de um leitor desatencioso. Escrevia para se aprumar, como aquele que precisa de um gole de álcool para ter o direito de falar. Escrevia para desabafar, tirar de dentro de si o que lhe estava incomodando. Escrevia para dar luz às trevas de seu rápido pensamento. Escrevia para entender melhor a morte que mora tão perto da vida, amedrontando os homens em suas vidinhas tão desiguais. Escrevia para não ter que dormir um sono perdido, sem direção, cheio de alucinações. Escrevia para encher o mar de alegria. Dá aos rios novas águas. Aos amores desentendimentos. À dor um direcionamento. À saudade um aperto de mão. À vida uma despedida de ex-vivente. Ao tempo uma tentava de travessia. Aos lugares um amargado desprendimento. À coragem o adeus da partida, a manobra da vida, o desmanche de quem viu com os seus próprios olhos a cegueira de toda uma gente que insiste em pensar como nos velhos tempos... Insiste em pensar com a mente retrógrada dos erros da tradição. Insiste em pensar com os mesmos corpos trancados num passado amedrontado por homens que violentaram a História com os seus fixos e cartesianos discursos hegemônicos. Enfim, ele era um poeta que pensava, matutava, chorava, e para vencer a si mesmo, escrevia com uma “escritura de ouro” para um “livro de ouro” como nunca se ousou neste Brasil afora ser escrito. E eu tenho dito entre tantos outros ditos que neste dito sempre cabe mais um dito para ser dito e redito neste livre pensamento de ouro, delírio de um poeta que escreve uma carta de ouro para leitores de ouro, para um tempo preciosamente tecido nas margens finas de um eterno rio que nunca dorme, o rio que faz do poeta uma água em eterno movimento.


   
Publicado no "Livro de Ouro do Conto Brasileiro Contemporâneo" - Edição Especial - Agosto de 2014