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Neri França Fornari Bocchese
Pato Branco / PR

 

Navegar até o Brasil


Tarde quente, ar pesado, abafado, sentei na varanda. O céu, num passo de mágica escureceu. Um aguaceiro daqueles. A chuvarada lavou a terra. As árvores com um verde esmeralda, salpicadas de gotas peroladas. O Sol logo surgiu, colorindo a paisagem.
Sentada na cadeira de balanço, fechei os olhos, me vi criança. A enxurrada cobrindo a valeta. Nós, com os barquinhos de papel feitos de folhas de jornal Zero Hora, singrávamos os mares. Apostávamos corrida. Um tempo feliz! Brincávamos com muita alegria. O vencedor dava direito ao dono de ser o Capitão de Mar. Até ataques de piratas, aconteciam. Com bolinhos de barro, fazíamos uma brincadeira barulhenta. Ao entardecer, só os olhos limpos, cansados, parávamos. O primeiro banho, era no taque, com uma bica de taquara, aonde a água vinha direto da fonte.
Espreguicei, já anoitecendo recordei da Nonna, contando aventuras da viagem de navio. Sempre dizia alguma coisa que não sabíamos ainda.
Suspirei de saudade. Cheguei à enxerga-lá na cadeira de balanço, com um lenço na cabeça. Ela não usava o preto das viúvas. Dizia:
- Fui feliz com o meu amado. O lenço era de cores discretas. O gatinho siamês fazendo parte do cenário. Nós sentados nos pelegos, macios, viajávamos do porto de Gênova na Itália, para o de Santos no Brasil.
- Quando o meu pai resolveu vir embora, nós ficamos assustados. Logo, porém a expectativa da viagem tomou conta. Os últimos serões foram de despedida. Os nossos pertences vieram numas 4 canastras. Eu costurei na saia, aquela de uso por baixo do vestido, as minhas poucas jóias.
O Luigi trouxe muda de parreiras, oliveira, de cedro, de salsa gigante. Eu colhi uma mudinha de flor muito bonita, um gerânio cheiroso, mas não resistiu. Chorei, era para lembrar a minha janela.
Olhei o horizonte. Busquei com os olhos não querendo acreditar. Nada, nada mais da minha Pátria.
- Foi triste, ver tudo se afastando, ficando cada vez menor, até desaparecer, então a certeza, não dá para voltar. Cantamos Fratelli d'Italia. O comandante chegou a dar ordem para que ninguém ficasse no convés. Aos poucos a noite chegou ficou só a escuridão, quebrada pelo barulho da água.
Não dormi, fiquei sentado no chão, cuidando de ti. Já vi marujos mexendo com as mulheres jovens.
Obrigada, amore mio. Temos um ao outro, precisamos nos querer muito bem. Olhei o céu, estava estrelado. Para disfarçar comecei a observar cada estrela, sentir uma diferente da outra, tinham brilhos especiais. Pareciam piscar para mim.
Fizemos amizade com um marujo, ele nos dava água do mar. Assim se fazia de conta que lavávamos a nossa roupa. Ela ficava engraçada, parecia mais grossa. Ficamos sabendo o porquê daquele cubículo para nós, enquanto os outros eram alojados em enormes quartos só os homens, ou só as mulheres com as crianças.
- Cuide muito bem da Donna, não a deixe nunca. Tem marujo de olho nela. Se fosse o Comandante o interessado, não tinha como protegê-la.
Nas noites de Lua cheia, o convés ficava lotado, com o luar, fazíamos serões. Cantávamos tentando aplacar a saudade, a angústia, mesclada com a incerteza. Aprendi a gostar de olhar o céu parecia ser povo Fenício guiando-me pelas estrelas, por mares desconhecidos.
O triste era quando enfrentávamos uma tempestade. O navio jogava gente para todo o lado, muitos vomitavam, as roupas ficavam mal cheirosas. Até que quando secas perdiam um pouco do odor azedo. O cheiro de urina, de fezes era muito forte. A fumaça das chaminés deixava um cheiro horrível, o nariz, o corpo cheio de fuligem. Não tinha latrina, quem trouxe alguma vasilha, fazia as necessidades, depois jogavas no mar.
O almoço servido em grupos, em bacias de lata, sopa ou macarrão. Numa outra, outros alimentos. A caneca de lata, tinha alça, ficava quente. Só colher e garfo, de talheres. Um buscava para os cinco do grupo. Fomos convidados por mais três rapazes que estavam sozinhos. Assim ganhamos protetores. Algumas vezes um pouco de vinho. No domingo um pedacinho de carne ou, ovos cozidos. Às vezes serviam pouco alimento, para a gente comprar e, poder sobreviver. Os marujos agiam de má fé.
Uma noite, um marujo entrou no quarto, me agarrei na medalha do Anjo da Guarda, gritei por socorro, mas ninguém ouvia. O marulhar das ondas estava forte. Já estava deitado em cima de mim, Luigi apareceu. Largou-me, escondeu-se na escuridão da noite. Chorei muito, custei a dormir. Trouxemos os nossos amigos para o quarto com a gente. Sem privacidade, mas me senti segura. Eles se tornaram irmãos. Todas as noites, nós rezávamos o terço, Ajoelhados, pedíamos proteção a Nossa Senhora de Loreto. Eu tinha uma estampa, mas estava no Baú.
Depois de 30 dias avistamos o Brasil. A nova Terra, muito verde. De vapor chegamos ao Porto dos Casais no Rio Grande do Sul. Seguimos o nosso destino, chegamos até a Linha Jacinto, atravessamos o Rio das Antas. As bagagens de carroça, nós andamos a pé. Foi muito difícil, tudo era mato, as pirambeiras de belas paisagens, mas de difícil acesso. Não tínhamos nada, trazíamos o desejo de viver bem na nova Pátria.
Luigi voltou visitar à Itália. Não era mais a mesma. O tempo se encarrega de modificar qualquer lugar. As pessoas passam. A lembrança fica armazenada memória de quem a vivenciou.
Hoje, somos ítalo-brasileiros e felizes.


   
Publicado no "Livro de Ouro do Conto Brasileiro Contemporâneo" - Edição Especial - Agosto de 2014