Neri
França Fornari Bocchese
Pato Branco / PR
Navegar até o Brasil
Tarde quente, ar pesado, abafado, sentei na varanda. O céu,
num passo de mágica escureceu. Um aguaceiro daqueles. A
chuvarada lavou a terra. As árvores com um verde esmeralda,
salpicadas de gotas peroladas. O Sol logo surgiu, colorindo a
paisagem.
Sentada na cadeira de balanço, fechei os olhos, me vi criança.
A enxurrada cobrindo a valeta. Nós, com os barquinhos de
papel feitos de folhas de jornal Zero Hora, singrávamos
os mares. Apostávamos corrida. Um tempo feliz! Brincávamos
com muita alegria. O vencedor dava direito ao dono de ser o Capitão
de Mar. Até ataques de piratas, aconteciam. Com bolinhos
de barro, fazíamos uma brincadeira barulhenta. Ao entardecer,
só os olhos limpos, cansados, parávamos. O primeiro
banho, era no taque, com uma bica de taquara, aonde a água
vinha direto da fonte.
Espreguicei, já anoitecendo recordei da Nonna, contando
aventuras da viagem de navio. Sempre dizia alguma coisa que não
sabíamos ainda.
Suspirei de saudade. Cheguei à enxerga-lá na cadeira
de balanço, com um lenço na cabeça. Ela não
usava o preto das viúvas. Dizia:
- Fui feliz com o meu amado. O lenço era de cores discretas.
O gatinho siamês fazendo parte do cenário. Nós
sentados nos pelegos, macios, viajávamos do porto de Gênova
na Itália, para o de Santos no Brasil.
- Quando o meu pai resolveu vir embora, nós ficamos assustados.
Logo, porém a expectativa da viagem tomou conta. Os últimos
serões foram de despedida. Os nossos pertences vieram numas
4 canastras. Eu costurei na saia, aquela de uso por baixo do vestido,
as minhas poucas jóias.
O Luigi trouxe muda de parreiras, oliveira, de cedro, de salsa
gigante. Eu colhi uma mudinha de flor muito bonita, um gerânio
cheiroso, mas não resistiu. Chorei, era para lembrar a
minha janela.
Olhei o horizonte. Busquei com os olhos não querendo acreditar.
Nada, nada mais da minha Pátria.
- Foi triste, ver tudo se afastando, ficando cada vez menor, até
desaparecer, então a certeza, não dá para
voltar. Cantamos Fratelli d'Italia. O comandante chegou a dar
ordem para que ninguém ficasse no convés. Aos poucos
a noite chegou ficou só a escuridão, quebrada pelo
barulho da água.
Não dormi, fiquei sentado no chão, cuidando de ti.
Já vi marujos mexendo com as mulheres jovens.
Obrigada, amore mio. Temos um ao outro, precisamos nos querer
muito bem. Olhei o céu, estava estrelado. Para disfarçar
comecei a observar cada estrela, sentir uma diferente da outra,
tinham brilhos especiais. Pareciam piscar para mim.
Fizemos amizade com um marujo, ele nos dava água do mar.
Assim se fazia de conta que lavávamos a nossa roupa. Ela
ficava engraçada, parecia mais grossa. Ficamos sabendo
o porquê daquele cubículo para nós, enquanto
os outros eram alojados em enormes quartos só os homens,
ou só as mulheres com as crianças.
- Cuide muito bem da Donna, não a deixe nunca. Tem marujo
de olho nela. Se fosse o Comandante o interessado, não
tinha como protegê-la.
Nas noites de Lua cheia, o convés ficava lotado, com o
luar, fazíamos serões. Cantávamos tentando
aplacar a saudade, a angústia, mesclada com a incerteza.
Aprendi a gostar de olhar o céu parecia ser povo Fenício
guiando-me pelas estrelas, por mares desconhecidos.
O triste era quando enfrentávamos uma tempestade. O navio
jogava gente para todo o lado, muitos vomitavam, as roupas ficavam
mal cheirosas. Até que quando secas perdiam um pouco do
odor azedo. O cheiro de urina, de fezes era muito forte. A fumaça
das chaminés deixava um cheiro horrível, o nariz,
o corpo cheio de fuligem. Não tinha latrina, quem trouxe
alguma vasilha, fazia as necessidades, depois jogavas no mar.
O almoço servido em grupos, em bacias de lata, sopa ou
macarrão. Numa outra, outros alimentos. A caneca de lata,
tinha alça, ficava quente. Só colher e garfo, de
talheres. Um buscava para os cinco do grupo. Fomos convidados
por mais três rapazes que estavam sozinhos. Assim ganhamos
protetores. Algumas vezes um pouco de vinho. No domingo um pedacinho
de carne ou, ovos cozidos. Às vezes serviam pouco alimento,
para a gente comprar e, poder sobreviver. Os marujos agiam de
má fé.
Uma noite, um marujo entrou no quarto, me agarrei na medalha do
Anjo da Guarda, gritei por socorro, mas ninguém ouvia.
O marulhar das ondas estava forte. Já estava deitado em
cima de mim, Luigi apareceu. Largou-me, escondeu-se na escuridão
da noite. Chorei muito, custei a dormir. Trouxemos os nossos amigos
para o quarto com a gente. Sem privacidade, mas me senti segura.
Eles se tornaram irmãos. Todas as noites, nós rezávamos
o terço, Ajoelhados, pedíamos proteção
a Nossa Senhora de Loreto. Eu tinha uma estampa, mas estava no
Baú.
Depois de 30 dias avistamos o Brasil. A nova Terra, muito verde.
De vapor chegamos ao Porto dos Casais no Rio Grande do Sul. Seguimos
o nosso destino, chegamos até a Linha Jacinto, atravessamos
o Rio das Antas. As bagagens de carroça, nós andamos
a pé. Foi muito difícil, tudo era mato, as pirambeiras
de belas paisagens, mas de difícil acesso. Não tínhamos
nada, trazíamos o desejo de viver bem na nova Pátria.
Luigi voltou visitar à Itália. Não era mais
a mesma. O tempo se encarrega de modificar qualquer lugar. As
pessoas passam. A lembrança fica armazenada memória
de quem a vivenciou.
Hoje, somos ítalo-brasileiros e felizes.
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