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Flavio Dias Semim
Presidente Prudente / SP

 

O barbeiro


Formado por modestas instalações o pequeno e simplório salão de barbeiro localizado no ponto final da linha de bondes elétricos em um bairro pobre da cidade grande estava resumido a duas cadeiras profissionais da marca “Irmãos Campanile”, aparadores onde se sobrepunha os utensílios de trabalho, espelhos fixados à frente e alguns assentos de esperar como itens principais. A parede maior, em outros tempos recebera uma demão de cal, agora riscada pelo roçar dos encostos dos bancos de espera mostrava alguns quadros de madeira que emolduravam fotografias em preto e branco. Uma exibia a orla marítima da província de Bari, na baixa Itália, cidade natal, berço de Pepino. Outra, um casal em trajes matrimoniais onde o destaque é o belíssimo vestido branco da noiva, atestando a união legalizada de seus pais. A terceira, em fundo oval os semblantes sérios de seus avós. Em evidência um postal exibia a Basílica di San Nicola, padroeiro da cidade. Ao fundo, com realce, o distintivo de seu querido Palestra Itália.
A simplicidade do estabelecimento também refletia no trajar do profissional, vestido com avental branco, não tão branco como já fora em outros tempos, mas com relevo de constantes lavagens. Os sapatos gastos pelos quilômetros percorridos ao redor da cadeira já tinham os solados bastante finos e os saltos demonstravam o formato de cunha, causados pelo pisar inclinado do homem que se equilibrava sobre eles.
Nos momentos de ócio enquanto esperava o próximo cliente, afiava, sem parar, seu instrumento de trabalho mais querido, a navalha. Sobre uma fita de couro de boi, presa por um dos lados ao braço da cadeira de trabalho, ele esfregava carinhosamente o lâmina da navalha para cima e para baixo, numa sequencia dedicada e infindável, alegando sempre que aquele proceder mantinha e amaciava o fio do instrumento, produzindo um corte extremamente suave da barba do freguês.
Pepino, o barbeiro, como todo o profissional do ramo, falava muito, um falante inveterado, desafiando a natureza que deu aos homens uma só boca em detrimento de dois ouvidos. O forte sotaque italiano na pronúncia dificultava o entendimento das palavras ditas quase sempre para referenciar a vida das pessoas, dos vizinhos, dos amigos. Evitava continuamente dizer algo relativo aos clientes, pois um mal-entendido poderia resultar em prejuízo certo, com a perda do freguês, situação que nunca constava dos seus planos.
O bonde chegava ao ponto final onde seus poucos e últimos passageiros desciam ao término da linha e Pepino observava quem chegara quem partira e quem acompanhava quem. Sua atenção era maior quando, não tratando o cabelo de alguma pessoa, se posicionava por alguns momentos à porta do estabelecimento. Mas no exercício da profissão procurava uma forma para acompanhar os passageiros, esticando o pescoço diretamente para a rua ou, calculadamente, um dos olhos através dos espelhos. Ele anotava mentalmente, principalmente nas vizinhas o trajar de cada uma, as curvas do corpo e a cadencia de cada andar.
Cada bonde chegado produzia um festejo bastante barulhento, pois como a linha sobre a qual transitava era de única direção, ou seja, um ramal da principal que passava por outro bairro mais populoso, o cobrador tinha que trocar a posição dos encostos dos bancos de madeira e da alavanca da energia elétrica. Ao mesmo tempo o condutor cambiava os instrumentos de direção para o lado oposto do veículo, pois os arranjos frente e traseira se invertiam para modificar o sentido da volta. Tudo feito sem nenhuma delicadeza e acompanhado de muita algazarra, oportunidade em que os funcionários do coletivo aproveitavam para rapidamente saudar o italiano, falar alguns gracejos, zombar e provocar o barbeiro somente para ouvir o seu sotaque, para eles muito engraçado, bastante característico de um estrangeiro.
Momentos felizes aqueles.
No retorno, viajando sentado nos bancos de madeira e sem muito conforto o passageiro não podia deixar de ler durante o percurso a tradicional placa colocada ao alto, presa quase no teto à frente de todos, com a propaganda de um contemporâneo e famoso xarope contra a tosse:

“Veja ilustre passageiro, aquele tipo faceiro,
Que o senhor tem ao seu lado;
E, no entanto, acredite, quase morreu de bronquite,
Salvou-o Rhum Creosotado”

Tempos difíceis da segunda grande guerra mundial, no entanto a sua Itália, em princípio se mantinha neutra e por isso sonhava o Pepino com a possibilidade de voltar à sua pátria dopo la guerra, somente a passeio. Porem, o tempo corria célere e mais países aderiam ao conflito, inclusive a Itália. Em 1942 o Brasil declara guerra à Itália e à Alemanha logo após ter Vargas decretado o confisco de bens de imigrantes alemães e italianos. Algum tempo depois passou o Brasil a fazer parte dos países aliados que combateram a Itália, Alemanha e Japão, chamados países do eixo. Por isso, italianos, assim como os japoneses e alemães residentes no Brasil se tornaram considerados inimigos por muitas autoridades e muitos brasileiros. O idioma italiano foi proibido de ser falado publicamente e o sotaque italiano passou a ser motivo de perigo, vergonha e de chacota. Até o seu Palestra Itália foi obrigado a mudar o nome e passou a ser Palmeiras. Imigrantes e descendentes de imigrantes sofreram toda sorte de discriminação, humilhações, perseguições, ataques, etc. Gente honesta, trabalhadora, distante de sua terra natal há muito tempo, tendo feito deste País a sua pátria, de repente se viu apartada dos brasileiros em razão única da sua origem ou da origem de seus antepassados estrangeiros. Ser italiano era algo negativo e não foi diferente com o Pepino. A sua barbearia foi atacada por pedradas algumas vezes atiradas na calada da noite por fanáticos. A fachada do estabelecimento amanhecia pixada com acusações próprias da época: “fascista”. Na rua se via acusado de “comunista”. Seus fregueses, alguns por tendência outros por ignorância foram se afastando, talvez até por precaução, já que ninguém queria ser taxado como amigo do italiano, do carcamano!
A alegria do Pepino também foi definhando rapidamente junto com suas economias. Já faltava até o pão, aquele pão horrível, de baixa qualidade que se adquiria após algumas horas na fila da porta da padaria, em frias madrugadas.
Com sua mulher e seu filho adolescente, ela também italiana e o menino brasileiro, juntos padeciam em razão da situação da época, sofreram na carne e na alma as consequências daquilo que nada tinha a ver com suas existências, suas vidas, como se culpados da imbecilidade dos, entre outros, Hitler, Mussolini, Hirohito, Stalin, Roosevelt, Churchill e comandados ou comparsas.
Momentos infelizes aqueles.
Pepino foi definhando, tomado de uma angústia impar, sofrido e sem coragem em voltar para aquele desagradável mundo de homens, lama, hipocrisia e enfrentar a ocasião e vencer, dominar a situação e seguir em frente como fizeram outros “inimigos” igualmente perseguidos; preferiu tomar uma decisão violenta e acabar com aquela situação.
Numa cinzenta manhã não abriu a porta da barbearia. Não trocou seu paletó pela bata semibranca de todos os dias e esperou o bonde chegar e terminar o ruidoso ritual da inversão da posição dos assentos e comandos. Bem em frente à barbearia fechada, caminhando firme, decidido, subiu e acomodou-se no último banco do coletivo que ainda estava praticamente vazio de passageiros. Após algumas sacudidelas do andar do elétrico, passando pelo primeiro cruzamento de ruas e antes da chegar ao próximo ponto de parada, tendo os olhos marejados de lágrimas e fixos para o alto balbuciou um pedido de perdão dirigido à mulher e ao filho e com a mão direita tirou do bolso interno do paletó o seu instrumento de trabalho, a navalha especialmente afiada para o ato e em seguida num golpe violento contra a própria garganta perpetrou um corte profundo e fatal. Algumas golfadas de sangue foram lançadas no banco da frente acompanhadas da derrubada da cabeça e corpo para o lado, causando uma poça vermelha e grossa do líquido, o combustível que até então lhe mantinha a vida, a alegria, sua existência, sua família.
Entre os dedos da mão esquerda apertava com todas as forças restantes uma pequena imagem de São Nicolau de Tolentino, considerado pelos italianos como o santo protetor dos injustamente acusados.
No funeral do Pepino, envolvidas em seu corpo e sobre seu peito entorpecido encontravam-se entrelaçadas duas bandeiras, uma do Brasil e outra da Itália, ambas molhadas, ainda encharcadas pelo sangue que escorrera de sua garganta cortada.
Nunca mais foi feita qualquer algazarra no ponto final daquela linha de bondes, numa eterna homenagem coletiva ao italiano.


   
Publicado no "Livro de Ouro do Conto Brasileiro Contemporâneo" - Edição Especial - Agosto de 2014