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Airton Baquit
Fortaleza / CE

 

A esperança de Cléo


Cléo acaba de recolher umas roupas depois do almoço. Blusas, calças e peças íntimas. Joga tudo dentro da enorme bacia das roupas sujas. O movimento é repetitivo, mas não diminui a quantidade de pano acumulado. Fica transtornada quando acontece o acúmulo de roupa, pois é mais trabalho para realizar. Apesar de não gostar muito do recolhimento dos panos, ela nunca mudou a expressão de sua face. Está sempre feliz. Ou quase sempre. Mas nunca cedeu espaço para a completa tristeza. Faz seu trabalho de forma brilhante. Segue a mesma rotina todos os dias. Chega à casa do patrão, prepara café, tira a carne para descongelar, lava a louça suja do dia anterior. Todos os gestos são movidos ao ritmo da rádio Verdes Mares, a famosa verdinha FM. Cléo não perde um programa do João Inácio Júnior, um dos locutores mais antigos da estação.
O dia corria bem. Nada de novidade. Entre uma conversa e outra, a funcionária da família Gouveia aproveita para retocar o esmalte. Passa bastante tempo ajustando o formato das unhas. De repente, o celular toca. A música escolhida como toque inicial é de Aline Barros, cantora gospel. Cléo atende a ligação e fica muda. Lágrimas escorrem por sua face. Palidez. Desespero. "Meu filho foi preso mais uma vez. Eu não mereço isso, não mereço!". O silêncio prevaleceu. Nenhuma palavra seria capaz de reestabelecer o que o tempo levou temporariamente. Nenhum suporte acalentaria um coração de mãe cortado pelas surpresas inesperadas da vida. Tudo que Cléo fez foi pegar uma imagem de São Jorge. Lágrimas continuavam a transbordar.
Farley já tinha sido preso anteriormente. Na primeira vez, passou mais de cinco meses na prisão. Era acusado de roubo. Cléo não acreditava no que as vítimas diziam. Pediu apoio ao patrão. Conseguiu advogado. Ligava todo dia para o doutor Fernando. Depois de um mês ligando diariamente para o advogado, decidiu buscar outras ajudas. Falou com o deputado que representa sua terra natal. Marcou horário lá na Assembleia Legislativa. Foi recebida e explicou o caso do filho. Resolveu a questão em pouco tempo. Farley experimentou novamente a liberdade. Para comemorar a volta do filho, Cléo pediu um dia de folga do emprego. A justificativa era de que precisava cozinhar as melhores comidas para o retorno do caçula. Fez bolo, pudim, macarronada. Também encomendou salgadinhos. Encheu balão e decorou a casa. Convidou alguns vizinhos para a festa surpresa. Farley retornava pela primeira vez.
Apesar de saber das atitudes inadequadas do filho, Cléo buscava negá-las. Naquela tarde quando atendeu o celular, a primeira palavra que disse foi 'mentira'. Não acreditou que Farley seria capaz de roubar novamente. A denúncia agora é mais séria. O processo envolve roubo e drogas. "De onde meu filho vai roubar para comprar drogas? Isso não existe", repetia insistentemente. Mesmo não querendo enxergar, ela sabe que o problema existe. E é gigante. Sabe tanto que um dia pediu ajuda ao patrão. Outra vez ao deputado. Agora buscou um defensor público. Correu clamando por socorro. Mas a maior prova de culpa do filho não está nessa interminável recorrência de uma mãe por ajuda. A culpabilidade de Farley apareceu quando Cléo mandou forrar sua própria residência, escondeu o pouco dinheiro debaixo da cama, trancou a casa com cadeado e amarrou o próprio filho perto de um móvel envelhecido.
Os dias passam e Cléo não escuta mais a rádio Verdes Mares. Trocou o João Inácio pela Gospel FM. Aline Barros canta ainda mais alto no toque de seu celular. Frequenta diariamente os cultos do bairro. Pensa até em ser evangelizadora quando o filho sair pela segunda vez da cadeia. Surgiu nela uma fé incrível. E uma coragem monstruosa. Toda quinta vai ao centro fazer compras para levar à Farley, pois as visitas no presídio acontecem exclusivamente dia de domingo. Compra tudo que a lista da penitenciária permite. Acorda às cinco horas da madrugada para fazer comida. Prepara tudo que o filho mais gosta. Embrulha as mercadorias numa sacola, desce o morro e entra no ônibus. De sua casa até o presídio são duas horas. Quando chega, pega uma senha, passa pela revista das mulheres e aguarda o tão esperado encontro.
Toda semana é a mesma coisa. Farley liga escondido de dentro da prisão. Diz que roubaram seu colchão, perdeu o chinelo, está sem roupa. Cléo acredita em tudo que o filho relata. Sensibilizada com a situação, compra tudo outra vez. Está completamente endividada. Já pediu dinheiro ao banco, aos vizinhos, aos patrões. Não há mais para onde apelar. Falta dinheiro para as contas básicas de água e luz. Não há dinheiro para a feira da semana. Tem dias que ela leva para casa o que resta do almoço dos Gouveia. Diz sempre que precisa levar os restos para as galinhas, mas recolhe todo tipo de alimento. Bolo, biscoito, frutas, feijão. "É que as galinhas comem de tudo. A fome é quem dita a comida da vez", justifica.
O processo do filho continua parado. Contas acumuladas. Discussões com o marido. Instabilidade. Cléo não sabe quando o filho sairá do presídio. Pagou até umas conhecidas do bairro para todo dia verificar lá no fórum como está o andamento do processo. Acredita que a liberdade está perto. Já faz o cálculo de quantos vizinhos vai convidar para a festa do segundo retorno. Também planeja pedir três dias de folga aos patrões para preparar as melhores comidas de Farley. Enquanto o alvará não é impresso, ela continua indo todo domingo até o presídio com as compras dentro da sacola, satisfeita por está cumprindo o papel de mãe, em que a liberdade só é completa quando o filho retorna ao verdadeiro lar.


   
Publicado no "Livro de Ouro do Conto Brasileiro Contemporâneo" - Edição Especial - Agosto de 2014