Ediloy
A. C. Ferraro
São Paulo / SP
Faces de um crime
O magistrado é anunciado pelo meirinho e adentra a sala
de julgamentos do fórum criminal. Feitas as observações
de praxe, iniciada a sessão, processo passa a ser lido,
maçante, exaustivo, extenso, evidências de cansaço
na assistência. Dia quente, auditório cheio de visitantes.
No banco o réu, cabelos cortados rentes, camisa branca
fechada, olhos baixos, fugidios. Homicida da cônjuge detido
em flagrante, não reagira à ordem de prisão.
Não se evadira do local, a casa do casal. Consta que fora
encontrado em estado de choque, não oferecendo resistências.
A morta, atingida na cabeça por um cinzeiro de cristal,
apesar de pequeno, o objeto era pesado, atingindo-a frontalmente.
Morrera após os primeiros socorros, à caminho do
hospital, com traumatismo craniano profundo.
No júri 7 nomes do povo, selecionados dentre 21 pessoas
da sociedade, olhos pregados, atentos, representando a expressão
popular.
Sentimentos difusos na platéia, parentela da vítima
desejando a condenação do réu, achando-o
merecedor da pena máxima. Familiares do assassino rezando
pela absolvição. Os presentes, curiosos e estudantes
de direito, aguardando o desfecho, indiferentes ao resultado,
ali se achavam por razões diversas, a simples curiosidade
ou aprendizado.
Imponente, cônscio de si, o promotor acusa, reiterando passagens
do processo, reavivando cenas, gesticulando acusatoriamente para
o réu, encenando dramaticamente visando o plenário,
o conselho de sentença.
Na contenda, o advogado convicto na defesa de seu cliente, trazendo
os fatos abonadores da conduta do ora condenado, relembrando ocorrências
de sua vida pregressa, desconstruindo a imagem de intolerante
e frio , enaltecendo seus valores anteriores às circunstâncias
do fatídico acontecimento.
Testemunhas em depoimentos de lado a lado, enriqueciam de detalhes
o enredo, ora favorecendo a vítima, ora atenuando o assassino,
inquiridas pela acusação e pela defesa.
Eloqüência inflamada, gestual de atores dramáticos,
em suas togas negras, incendiando a atenção da platéia,
gerando um espetáculo, onde culminam as divergências,
ressuscitando detalhes das intimidades dos envolvidos, trazendo
a público a história entre quatro paredes daquelas
vidas sob os holofotes dos argumentos lancinantes, persuasivos.
Debates acirrados, réplicas e tréplicas, encenações
pujantes, promotoria e defesa em duelo aberto nas palavras buscando
o convencimento de suas teses, um acusa, outro defende. Encenações
de verdadeiros artistas dos discursos, convincentes, bem articulados,
de efeitos visuais e sonoros, deixando perplexa a assistência.
Dramáticas cenas reacendidas aos presentes, expostos a
nu os envolvidos. Ao público, em cores acentuadas pelas
expressões daqueles homens, desnudando e expondo as vísceras
da intimidade daquele casal. O esposo, um homem insensível,
para quem a convivência com aquela mulher tornou-se um enfado,
e que a estava levando ao desespero na rotina do casal. Queria
vencê-la pelo cansaço até que concordasse
com o divórcio, a privava até da relação
íntima, embora dormissem no mesmo leito, mal se aturavam.
Relação esgarçada, corroídos pela
convivência de seres que perderam-se nos emaranhados de
uma rotina que os fizeram estranhos coabitando o mesmo teto.
Detalhes trazidos à baila, graças a uma confidente
da vitima, amiga íntima. Testemunha portadora das informações
mais reservadas da assassinada. O objeto da cobiça era
a posse da propriedade, uma casa de classe média. Ambos
só tinham aquele teto, cuja separação obrigaria
a um deles a buscar nova morada, pagando aluguel. Possivelmente,
o então assassino não pensava em um acordo, com
a venda do imóvel e a repartição por igual
da importância auferida, reclamava ser unicamente dele,
pois ela nunca teve renda própria, carregava nos tons o
promotor púbico.
Apartes veementes da defesa, - Meritíssimo,"possívelmente”
é uma hipótese, não uma prova, estamos diante
de uma indução por presunção de raciocínio
!!! – Reclamava, aos brados, o defensor, tendo sua reivindicação
consentida pelo magistrado, ao acatar as alegações
de não constar provas das afirmações de que
seu cliente recusara qualquer acordo sobre a venda do imóvel,
por inexistente aos autos, colocadas como verdade, pedindo aos
jurados que desconsiderassem tal assertiva por leviana, irreal,
falsa, meros arroubos de oratória.
A falecida ressurge como heroína, na retórica
da acusação. Pessoa digna, honesta, acima de qualquer
crítica, comportamento exemplar. Mulher recatada, boa dona
de casa, religiosa. Quanto ao acusado, um libertino, de vida torta,
descumpridor de seus deveres, dado às atitudes de visível
deslealdade conjugal. Obrigava a esposa a trabalhos extras, além
das atividades domésticas, confeitando bolos e doces, para
suprir as despesas mais comezinhas. Assim seguia a peroração
da promotoria, fazendo suspense na galeria dos presentes, aumentando
em minúcias o quadro desfavorável ao acusado. Arrematando
a argumentação pedindo a pena máxima, agravada
por motivo torpe, e por ser a atingida pessoa de estatura frágil,
enfrentando um ataque masculino, portanto em desigualdade de condições
de defesa.
Revivida a morta, aviltada, na eloqüência da defesa,
gerando desconfortos aos familiares que assistiam os debates,
desejando demonstrar e convencer que o marido, o assassino, tinha
atenuantes e que a vítima não era exatamente a figura
pacata, mas pessoa de difícil trato, sofria de ciúmes
doentios e atormentava a vida do esposo, homem honesto, cumpridor
de suas obrigações, trabalhador de muitos anos na
mesma empresa. Ela, portanto, com a convivência doentia,
levou-o àquela situação trágica, de
autodefesa, sim, pois ele antes foi agredido com aquele objeto
pontiagudo, portado por ela, que sobre ele teria se jogado visando
feri-lo, momento em que, por instinto natural de defesa, de maneira
acidental, teria revidado, embora não tendo a intenção
de atingi-la, por amá-la acima de tudo.
“Senhores e senhoras do júri, este drama trazido
nestes autos, quanto de verdade nos traz ? Quão difícil,
por vezes, torna-se uma relação a dois,onde alguém,
chegando do seu trabalho de muitos anos, diuturnamente, é
recebido em seu lar, no recesso do que deveria ser o abrigo contra
as intempéries externas, mas, repito, convive com a esposa
em constante mau humor, amarga, ferina nas colocações,
sempre acusando o marido, tornando sua existência um martírio...
Reflitam em suas consciências, quantas moradas abrigam dramas
semelhantes ? Quantos de nós resistiriam a esse desafio
diário, a esse verdadeiro suplício ? Embora casados
há mais de dez anos, jamais tiveram a benção
de povoar o lar com filhos, dado a problemas de saúde da
esposa. Assim vivia seus dias, agüentando os ciúmes
por imaginárias aventuras extraconjugais assacadas por
ela, em brados, testemunhados por vizinhos. Cotidiano de uma vida
que se surpreende no extremo ao ser agredido, além, muito
além das palavras fortes que suportava todos os dias, mas
por um objeto que poderia ter ceifado sua vida... Este homem,
falava dirigindo-se ao réu, merece ser condenado, como
se fosse um assassino frio, calculista, que pretendia obter o
resultado da morte da companheira ? O que fez, evadiu-se da cena
do crime ? Não, pelo contrário, chamou o resgate
médico e denunciou-se à polícia, aguardou
por ela. Agiu por reflexo, por legítima defesa, jamais
pretendia a consumação do fato que o traz hoje na
condição de réu neste processo... Nunca se
defendeu das acusações injuriosas levantadas por
uma mente adoecida pelo ciúmes, jamais a agrediu antes,
como não o fez , até se defender da agressão
que poderia levá-lo à morte... Este homem, trabalhador,
probo, é antes vítima das circunstâncias que
autor premeditado de um crime, deve ser inocentado, pois, reitero,
apenas se defendeu de um ataque que poderia lhe ter sido fatal...
Encerrava seu discurso, aparentando estar emocionado, pousando
sua mão sobre a do acusado.
Sofismas onde os papéis se invertem, a vítima é
a culpada, e o réu, a real vítima.
Na persuasão do corpo de jurados dirigiam-se as atenções
dos litigantes, cada qual fazendo valer seus argumentos, àquele
grupo único caberia o veredicto da sentença.
Impassível, no banco, aguardava o réu a decisão
de seu destino...
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