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Lourival da Silva Lopes
União / PI

 

Filhos da infância


A casa. Enquanto caminhava, ia me lembrando de tudo. Nasci ali, naquela casinha de palha, com paredes de taipa, com esteiras na janela. O chão batido e argiloso fazia os anos voltarem: o cofo em um canto da casa, uma tarrafa pendurada na travessa de carnaúba, uma espingarda presa à parede em local elevado para que os meninos não pudessem alcançá-la, uma bileira do outro lado da sala, perto da cozinha, que estampava o brilho dos copos de alumínio, areados com areia do rio Parnaíba e dois potes grandes para esfriar a água de beber. Na sala, havia ainda espaço para um paiol de arroz e milho.
Antes de ir para a roça, minha mãe levantava, ralava o milho, botava em um prato, cobria com um pano, botava água em uma panela e colocava o prato com o milho coberto pelo pano, virado para o fundo com água. No final, saía o cuscuz mais gostoso do mundo, que sustentava os trabalhadores até a hora do almoço.
Mas o tempo já havia passado. Eu estava apenas lembrando. Hoje, está tudo diferente.
De longe, avistei uma casinha, quase uma tapera. Pensei na minha casa da infância. Era ali, naquele lugar, imaginei. Contei os passos do rio até a casa. Tive a sensação de ter diminuído a distância. Depois vi que não era sensação, era uma constatação: do rio, onde minha mãe batia roupa, até a tapera a distância era bem menor. O que teria acontecido? O assoreamento do rio havia encurtado a distância, durante o intervalo da minha infância e da minha madureza.
Paro embaixo de um pau-d’água ressequido pelo sol escaldante do mês de outubro. Olho para cima. Não consegui contar as casas de maribondo surrão, eram muitas. Pus o dedo na boca fechada, para que meus companheiros entendessem que não podiam falar. Do contrário, seríamos surpreendidos pelos maribondos: ferroada dolorosa. Passamos ilesos.
Alcançamos o terreiro. Novamente, outra recordação. Varrido com vassoura de gravetos, era no terreiro que eu e meus amigos corríamos atrás de uma bola feita de bexiga de bode, chutando para onde o pé pegasse. Brincadeira de criança, invenção. Depois pensei no cavalo de carnaúba que eu montava, correndo de um lado para o outro, gritando: “Ei, boi, sai pra lá, bicho brabo”. E puxava na rédea do cavalinho, fantasiado na minha imaginação de criança.
Mas o que mais me surpreendeu, naquele momento, foi pensar nas cambicas de jenipapo, de buriti, de pitomba, de murici que minha mãe preparava, para depois dividir entre os filhos para matar a fome. Cambica com farinha de puba. Não utilizávamos copos. Era no coité, feito de cujuba, bem raspada. E, à noite, quando não havia nada para o jantar, comíamos sembereba de palmito babaçu.
Chegamos. A porta estava fechada. Será que ali morava alguém? Bati palmas. Não apareceu ninguém. Tentei novamente, mais alto. Ouço passos, que me parecem arrastados. Escuto o ranger da porta. Abriu. Um velhinho bota a cara fora e pergunta:
- O que querem?
- Viemos só espiar se nossa infância ainda mora aqui. Mas já temos a certeza.
- Quem são vocês? – indagou o velhinho.
- Somos o que sobrou da nossa infância. Mais nada.



   
Publicado no "Livro de Ouro do Conto Brasileiro Contemporâneo" - Edição Especial - Agosto de 2014