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Rô Mierling
Passo de Torres / SC

 

O toque da chuva


Ela escutava lá fora o barulho da chuva.
“Estranho isso. Achei que não chovesse no inferno” – ela pensa de forma irônica.
Ela está encostada na parede olhando através da pequena janela de vidro. Vidro sujo e ensebado. Mesmo assim ela consegue ver as gotas de chuva caindo lá fora.
Os soldados de plantão correm de um lado para outro, cobrindo montanhas de lenha, pilhas de armamentos e mantimentos que chegaram naquela tarde através dos trens.
Ela sente um frio no corpo, uma fraqueza na alma. Em pé ali, olhando pela janela o céu escuro e carregado, por um momento ela sente como se não estivesse presa. Ela sente como se fosse tudo normal ao seu redor.
A chuva aumenta sua intensidade e agora mal dá para ver através do vidro, ouve-se um barulho forte no telhado e pingos caem através das grandes goteiras do dormitório.
Muitas das mulheres se levantam, reclamam, resmungam, trocam de lugar. Baldes são colocados para conter as goteiras, mas a grande maioria das prisioneiras nem se move, não querem saber, não se incomodam com o que as cerca.
Hanna olha de novo através do vidro da janela e ao longe ela vê um soldado parado lá fora, em pé, ereto, firme, com seu uniforme impecável, suas botas alinhadas e sua arma grande e descomunal. Ele está com o olhar fixo na direção da janela, como se pudesse olhar para Hanna e ver que ela o está observando.
Ele continua lá, mesmo com a chuva pesada e torrencial, impassível, não se move, de guarda na porta do dormitório dos homens, um verdadeiro símbolo da força, da persistência, da ordem e da constância dos princípios mais basilares do patriotismo.
Mas a chuva pesada o molha, o encharca de verdade. Hanna o observa e vê que com a força da chuva, os ombros do homem já não ficam mais tão eretos, ele olha para um lado, e depois para o outro, desolado.
Até que por um momento, Hanna sente que ele a vê de verdade. A chuva fica mais branda e agora é possível para Hanna ver todos os contornos do soldado. Ele está observando ela.
Os olhos se cruzam, ela com seus olhos azuis e tristes, ele com seu olhar de falcão caçador, firme e feroz. Ela sustenta o olhar, não se intimida. Ele fica curioso e dá um leve passo a frente como se para tentar visualiza-la melhor. Ela se aproxima mais do vidro, as outras prisioneiras já foram deitar. Todas dormindo, tudo em silêncio e no escuro.
Hanna encosta seu rosto totalmente no vidro da janela e percebe que a janela é móvel, por alguns centímetros ela se abre, não mais do que o suficiente para passar uma mão pequena.
Hanna, de forma insana e devagar, coloca sua mão para fora da janela. O soldado, em um impulso louco, atravessa a rua e se aproxima da janela, Hanna nada teme, continua ali parada, com sua mão para fora da janela, solta, livre, sentindo os pingos de água que agora são serenos. O soldado se aproxima mais e mais, os olhares agora se firmam um no outro e Hanna pode ver o brilho desconhecido do olhar do soldado. Ele calado, aproxima sua mão da dela, ela não se move, ele segura com carinho seus dedos brancos e frios, ela fecha seus dedos ao redor dos dedos dele.
E ali o casal fica por longos minutos, dedos entrelaçados, mãos unidas, corações acelerados e olhares cruzados. Ao longe se ouve um estrondo. Hanna se assusta e retira a mão da janela. O soldado fecha novamente seu semblante e dá um passo para trás.
Hanna agora só observa. O soldado volta ao seu posto e finge que nada se passou.
O dia amanhece e Hanna ainda está na janela, o soldado se foi, não antes de lançar a Hanna seu último e discreto olhar.
Ao meio dia os sinos tocam no vestiário, hora do banho. Em fila, as mulheres são instruídas a retirarem toda a roupa e a se encaminharem lentamente para uma grande porta.
“Vão tomar banho” — dizem as soldadas.
Elas entram uma a uma na grande sala, a última da fila é Hanna e antes de entrar ela olha e percebe que tem um homem segurando a porta. É o soldado da noite anterior.
Seus olhares se cruzem novamente, ele fica inabalável, ela abre os lábios de forma imperceptível, como se fosse pedir ajuda, mas se cala.
Ela entra na sala, ele fecha a porta que tem um pequeno quadrado lacrado com vidro.
Hanna encosta seu rosto contra o vidro da porta. Do outro lado, o soldado, firme e ereto, dá um leve passo ao encontro da porta e pela última vez os olhares se cruzam.
Alguém em algum lugar liga a bomba de gás. Pelos dutos de ventilação da sala, um gás mortífero se espalha aos poucos. As mulheres começam a correr em círculos gritando.
Hanna encosta sua mão no vidro e olha para o soldado. Ele, sem conseguir se conter, ergue sua mão e toca no vidro do outro lado da porta.
O gás entra nos pulmões de Hanna, que suavemente vai ao chão e em poucos minutos dá seu último suspiro em uma das últimas câmaras de gás do campo de concentração de Auschwitz.

Polônia – Segunda Guerra Mundial - 1945




   
Publicado no "Livro de Ouro do Conto Brasileiro Contemporâneo" - Edição Especial - Agosto de 2014