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Gabriel Bocorny Guidotti
Porto Alegre / RS

 

Criminoso dos dentes

Toda vez que vou ao dentista, minhas expectativas se inflamam em ansiedade. Cuidei bem? Serei elogiado? Ou, no caso do profissional que me trata, serei chamado uma vez mais de ‘criminoso’? Não que ele fale por mal. Trata-se de uma forma de educação. O paciente sente o peso na consciência e passa a destinar um tempo maior para a higiene bucal.

Meu dentista, dono de um vasto conhecimento técnico e prático, se inclina a conceder uma aula sobre o sistema dentário. Cheio de metáforas, ele insere na nossa mente a importância de cuidar bem dos dentes, de modo que, no futuro, possamos evitar gastos maiores com obturações, extrações, remoções, entre outros. Meu caso, contudo, é de uma boca “excelente” que poderia ser mais bem cuidada.

Ao entrar no consultório, sou bem recebido, como sempre. Um aperto de mão solidário me conduz àquela cadeira que presenciou inúmeras consultas, inclusive uma onde participei de um processo chamado ‘dança do dente’. É fácil presumir, portanto, que as lembranças não são as melhores! O dentista senta, faz uma análise preliminar e consulta a minha ficha. Nada computadorizado, tudo analógico. O sermão começa. Eu dou risadas, sabendo que ele fala a verdade. Pela primeira vez na vida, aceitei ser um criminoso de mim mesmo e contra eu mesmo.

Após um bate-papo ocupacional inicial, as pedras de tártaro voariam à profusão. Uma guerra entre Cronos e Zeus, conforme a Mitologia Grega. Foi no Tártaro onde o titã restou aprisionado para sempre. Mas não havia guerra alguma. Um pouco de irresponsabilidade comigo mesmo, se me permitem dizer. Escovo regularmente, mas os cuidados com a boca são profusos, não se adaptam ao tempo disponível em 24 horas.

A pomada anestésica é de abacaxi com coco. Uma boa pedida para tarde calorosa de outono. O efeito, contudo, é mínimo e não impede que os instrumentos dentários encostem na gengiva. Ela se retrai e começa a chorar sangue. Um jato d’água de uma mangueirinha aparece para fazer a limpeza geral, algo que instila um princípio de alívio momentâneo – rapidamente interrompido pela continuidade da operação.

Durante a consulta, no entanto, um fato inesperado acontece. O dentista recebe um telefonema da mãe, que não sabia mexer no controle remoto da TV a cabo. Atencioso, o filho deixa minha gengiva em paz por alguns momentos a fim de atender ao chamado. Detalhadamente ele explica: “O controle da TV precisa ficar no canal 3. E aí, no da TV a cabo, tu digitas qualquer canal”. Depois de três tentativas, a progenitora compreende. Ele regressa para continuar com a destruição do tártaro. Pedrinha para cá, sangue para lá e a minha boca no meio de tudo. Definitivamente, ir ao dentista não é a melhor sensação do mundo.

Ao fim, o alívio é inevitável. O desfecho da ‘tortura necessária’ é sucedido por um toque na campainha, onde o pessoal do posto pede que eu troque o carro de lugar. Petulância deles considerando que eu estava pagando pelo estacionamento. O dentista se despede e marca uma nova consulta para a semana seguinte. Os próximos dias, certamente, seriam de readaptação a dentes livres do tártaro, com grandes nichos onde antes eles residiam. Esta sensação, sim, é boa.

 

   
Conto publicado no Livro de Ouro do Conto Brasileiro Contemporâneo - Edição Especial - Julho de 2015