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Ricardo Steil
Itajaí / SC

 

Do significante nosso de cada dia

Pensou quão silenciosa ela permaneceu durante o trajeto. Algo incomum, visto que, nas sextas era sinônimo de animação. Voltou seu olhar para o dia na busca de um por que. Descartou. Impossível, ela sempre amou a primavera. Havia flores nos canteiros, crianças sorridentes nas calçadas e o sol teimava em não desaparecer no horizonte naquele fim de tarde. Quiçá o trânsito? Besteira, não conhecia uma mulher mais tranquila no volante. Podar-se-ia ter se esquecido de alguma data especial? Negativo: ela era de março; o aniversário de namoro era em julho e estavam no décimo mês do ano em decurso. Contudo, havia algo, saber o que era, porém era outra questão.
                Alice se apresentava como uma incógnita, ponto de interrogação quando estacionou o carro na propriedade dele. Talvez, a surpresa mudasse seu espírito, pensou consigo.
                Eis, que a surpresa surgiu quando abriu a porta do carro pulando no colo dele.
                — Cão! He, he papai tava com saudades — brincou com o pelo branco do filhote de Samoieda. — Deixa eu te apresentar. Alice este é Cão. Cão esta é a Alice.
                Cão fitou-a com língua de fora. Depois a cumprimento com dois latidos eufóricos.
                — Cão! Como cão? Teu cachorro se chama Cão?
                — Claro — respondeu tranquilamente.
                — Pelo amor de Deus, quem em sã consciência dá o nome de Cão à um cachorro?
                — Bem, o cão é meu e eu chamo o cão de Cão.
                Não acreditou no que ouviu. Sabia que ele adorava fazer piadas, mas, aquela não parecia uma das suas.
                — Eduardo, ele tem que ter um nome!
                — Que nome então?
                — Ah, sei lá!
                — Sei lá! — e voltando-se para o filhote — Então Cão, qures que te chamem de “Sei lá”!
                Cão ficou em silêncio fitando o dono como quem nada compreende do que está ocorrendo.
                — É pelo jeito ele não curtiu muito.
                — Não é isso — retrucou energicamente. O rosto alvo enrubescera: sinal de perigo.
                — Tudo bem, está em tuas mãos. Vai lá dá o nome para ele.
                — Eu não sei que nome dar — retrucou.
                — Ah ah, viu como não é fácil dar o nome a um cão?! Não é mesmo, Cão, graçinha do papai...?
                — Tudo bem, vem cá — o filhote pulou no colo dela. — Vou te dar um nome. Um nome di-rei-to! — soletrou. — Você será Lacan.
                — Enlouquecestes? Chamar meu cão de Lacan!
                — Por que não? É tão bonito. Sabes o quanto eu amo Lacan.
                — Perfeito! Aí eu solto na análise que meu cachorro se chama Lacan e meu o analista vai e me dá aquela “pontuada” frente tamanho sacrilégio!
                — Puro imaginário. Isso deve ser transferência negativa sua para com ele. Pobre analista. Tudo bem lindinho. Te chamaremos de... Freud! Isso Sigmund Freud.
                — Sádica! Tu queres me ver retorcendo no divã.
                — Aff!
                — Perfeito, a mulher da minha vida é mais psicanalista do que eu que estou no processo. Dia desses vai estar fazendo análise didática comigo!
                — Ahhhhh não sei — entrecortou fitando-o. Meu Deus, você não tinha ideia de outro nome?
                — Bem, cheguei a cogitar Pompom, mas...
                — Jesus Cristo, Pompom! — frisou acariciando o cachorrinho.
                — Pompom é bonito!
                — Isso é marca de fraldas, Eduardo!
                — Tás louca, Alice. Marca de fraldas é Pampers. De onde você tirou essa idéia de fraldas?
                — Do mesmo lugar que você tirou o nome de Cão para o cão!
                Fitaram-se. Eduardo reconheceu que ela estava uma “pilha”, somente não descobrira a causa, ainda.
                — Espera. Deixa eu ter uma ideia. Que tal Skinner, isso Skinner. Não faça essa cara, amor!
                — Alice, tu sabes o que penso sobre a teoria comportamental. E a propósito Skinner não é um reforço positivo comigo.
                — Hoje você está difícil — fez beicinho — É... é complicado dar o nome a um cão.
                — Viu, não te disse?
                Cão virou a barriga para que ela pudesse acariciá-lo.
                — Ai meu Deus, mas ele é uma gracinha, não dá para ficar sem nome.
                — Ele não tá sem nome. Ele se chama Cão, pronto, simples e todo mundo sabe pronunciar.
                — Ah, você me tira do sério! Pobre cãozinho. Ahhh como é complicado! Já sei. Thor. Vamos chamá-lo de Thor.
                Foi o momento dele “fechar a cara”. Thor, o segundo homem mais detestável da sua lista. O primeiro era aquele jogadorzinho da seleção de Portugal do qual devido tanto ciúme nem pronunciava o nome. Havia outro: um sertanejo desafinado. Mas, graças à análise resolvera seus ciúmes quanto ao mesmo. Isto é, excetuando quando ela comentava algo sobre o sujeito.
                — Tu sabes quem é o Thor? — perguntou em seco tom.
                — Sim. Aquele loiro lindo, forte do cinema! — ela respondeu virando os olhinhos só para irritá-lo.
                — Não! — cortou bravo — Ele é um babaca que em três dias aprende a boa educação e usa nas costas a cortina da casa da mãe dele. Detesto os heróis da Marvel.
                — Detesta tanto que vive como o Peter Parker.
                — Como assim, como o Peter Parker?
                — Sem um tostão no bolso — fez língua.
                Pensou em fazer um discurso quanto ao descaso aos escritores nesse país, mas, conteve-se, decidira por esse caminho que arcasse com ele. Talvez, um dia a psicanálise desse há ambos uma vida mais confortável. No momento, apenas dava-lhes boas piadas e possíveis nomes para o filhote canino.
                — Tá vendo Cão, por baixo desses olhos azuis encantadores se esconde uma mulher muuuuuuito cruel — fez língua também.
                — Mas, meu Deus o que vamos fazer com você, hein? Já sei, vai ficar lindo e muito mais porque é francês: objeto petit a — concluiu referindo-se a um termo lacaniano que simboliza o objeto de desejo máximo de cada ser humano.
                — Negativo, só tenho “uma” objeto petit a. Sem chance. Gosto do cachorro, mas não morreria por ele.
                — Ah só tem uma Objeto petit a, é — sorriu. Cuidado hein, vai que lá na frente eu te cobre isso: só uma Objeto petit a. Só um objeto de desejo pleno.
                — Que besteira. É óbvio que só tenho uma Objeto petit a. E se quer saber: ela já me dá trabalho demais — concluiu rindo.
                — Elegeu, meu bem: te vira, sustenta. Não mandei me escolher.
                — Você está muito engraçadinha hoje, sabia? Muito — fitou o lindo rosto dela. O inconsciente e suas pegadinhas quem esperava que fosse amarrar o seu desejo ali? As outras — as do passado — não conseguiram mover uma palha, mas ela pegara-o de jeito tal que mal se reconhecia muitas vezes.
                — E você menos sarcástico do que o normal. Meu Deus, já pensou no quanto deve ser complicado dar o nome a um filho?
                — Sim, para um filho deve ser complicado. Já para filha é tranqüilo.
                — Ah sei — frisou com deboche.
                — Claro. Veja só: Juliana. Lindo, sonoro, elegante. Uma princesa!
                — Princesa! — ela soltou num grito. — Isso me cheira a “teu passado te condena”. Deve ser o nome de alguma galinha lá atrás!
                — Que galinha?! Isso é coisa da tua cabeça!
                — Confesse: quem é “essazinha”?
                — Por Cristo!
                — Ah é! E de onde vem o nome?
                — Sei lá! Tem coisas que a gente apenas sente não explica, pronto. Só acho bonito, sempre achei. Sei lá. Juuuuliana — suspirou, apenas para causar ciúmes nela, ainda não tinha engolido a reação dela frente à pronúncia do nome Thor lá atrás.
                — Sei... sem chance viu, sem chance, nada de Juliana. Aff... do jeito que és vais mandar escrever lá no cartório Filha para filha e Filho para filho. E eu não aceito isso viu!
                — Não aceitas? Não entendo mais nada... — “realmente você está estranha hoje, amor”, pensou — Bem, deixamos para ver isso quando chegar à hora não é mesmo.
                Ela apenas sorriu.
                — Que sorriso é esse?
                Alice abriu o porta-luvas. De dentro um exame de laboratório surgiu. Seguido de um livro barato desses que trazem uma centena de nomes para bebês.
                Beijaram-se. Ele agora se chamaria: papai. Ela: mamãe.
                E o cão continuou sendo apenas Cão, porque ele era especial demais para ter um nome qualquer. 

   
Conto publicado no Livro de Ouro do Conto Brasileiro Contemporâneo - Edição Especial - Julho de 2015