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Joaquim Paranhos de Menezes
Goiânia / GO

 

La Traviata e temperos

   Enfim chego em casa. Logo na entrada percebo o barulho vindo do vizinho. Meu Deus, não é possível que terá outra festa! Haja paciência!
- Estão festejando de novo?!
- Boa noite, Fernando. Sim, o baile de sempre... Hoje é sexta, lembra?
- Me esqueci. Eles deveriam fazer o mesmo!
Toda sexta-feira nosso vizinho dá esse tal baile. Maldito baile. Sempre o mesmo, com as mesmas músicas. Adoram as óperas, os cânticos animados, as trovas. O porque do anacronismo? Sei lá, e pouco me importa. Importa-me o ânimo. Quanto ânimo. Maldito ânimo! Tolice, afinal!
- Essa mania de erudição me dá nos nervos! Antes tivesse ficado de plantão...
- Bem, na próxima ficamos. Agora vem, Fernando, a comida que eu pedi já chegou...
- Que tem?
- O de sempre, né?! Não muda o nosso pacote delivery, não muda a comida.
- Ótimo! Para combinar com esse povo - o de sempre...
- Uma hora deve acabar. Realmente já estou estressada, também! Não aguento essa gente esquisita...
Aumenta-se o som.
"Libiamo, libiamo!..."
Caminhamos à cozinha. Jantemos, então.
"... Ne'lieti callici!..."
- Por que veio mais cedo, Fernanda? Achei que você chegaria daqui a duas horas.
- Dores de cabeça. Elas não me largam...
"Libiamo ne'dolci fremiti!..."
- E esses fanfarrões pioram a enxaqueca! - eleva a voz, competindo com o que talvez pudéssemos chamar de música. Eu não discordo.
- Também as tive, hoje. Melhor, sempre as tenho, não é? Já lhe contei sobre isso, não se recorda?
- Me lembro das suas queixas. Temos que nos consultar, não acha, Fernando?
- Báh! Besteira. Não temos esse tempo. Isso é muito...
- Realmente. 
Silêncio...
"Libiamo, amore fra i callici..."
Confesso. Fomos uma única vez nessa, digamos, noite dançante. Foi logo que nos mudamos para o bairro. Insistiram para que ao menos experimentássemos. Disseram ser imperdível. Esquisitos... Uma gente estranha, isso sim! Viram a madrugada, com nada se importam nesses foliões. Não param... Perde-se tempo. Maldito ânimo! Perdemos a noite de sexta e ainda todo um sábado. Acredita?! Explicaram o motivo da preferência musical, como que para justificar tamanha esquisitice. Não entendemos lhufas, pois eram estranhos.Também não valia a pena. Sorrimos, e pronto. Uma hora teria que acabar. Depois nunca mais voltamos, obviamente.
- Tempero.
- Como?
- Não há tempero nessa comida...
"Più caldi baci avrà!..."
- ...Nunca há! Onde está a pimenta, Fernanda?
- Não sei, achei que você a tivesse guardado...
- Merda! Não me lembro. Ela nunca está quando nós precisamos!
- Está sem gosto, Fernanda! O que me diz?
- Digo o mesmo...
"... Dividire il tempo mio giocondo..."
- Mas que crime! Essa mesma música sempre... Essa erudição piora minha enxaqueca! Maldito italiano, alemão, javanês, que seja! O que me diz, Fernanda, o que?!
- Não discordo...
"La vita è nel triputio..."
- Eles sabem! Sabem que aqui não há disso! Não somos de folias! E mesmo assim insistem com essas baboseiras, ainda por cima difíceis! Perde-se tempo! - me exalto. Infelizes! 
- Perde-se tempo! - repete Fernanda, também exaltada.
- Porra, Fernanda! Mas onde está a pimenta?! Temos que lembrar...
"Quando non s'ami ancora!..."
- Loucos! - grito. O que é isso? Onde já se viu? São um câncer para a sociedade...
- Um câncer, ouviram bem?!
" Godiam, fugace e rapido, Ell gaudio dell'amore!..."
- Eles não têm amor pela pátria, certo, Fernando?
- Certíssima! Mas onde está o tempero? No mínimo o sal...
- Não sei, não sei! Como poderia saber?
- Não poderia... Assim como eu também não poderia...
-... Pode ter ficado no vizinho, maldito seja... 
"Godiam, lá tazza..."
- Não. Quando nós fomos - como manda a boa educação - levamos outra coisa... Mas não foram nossos temperos.
- Talvez, minha Fernanda, tenhamos esquecido de comprar a pimenta, da mesma forma que o sal. E falta a canela, essa é importante! 
- A comida era tão boa... - mais uma vez, em nada eu discordava...
"E il cantico la notte..."
- Mas que inferno! Essa música!
- Realmente! - bufa Fernanda. E bufo eu!
- Oras, mas que cabeça a nossa! Comida de esquisitos, esquisita é! 
- Realmente!
Poucas garfadas depois. "...In questo paradiso ne sopra...". Não dá! Não presta o jantar desse jeito! Fosse só o dissabor da comida passava...
- Não adianta, vou dormir! Não devemos dar a mínima para esses daí...
- Exato! Vou já já. Hoje também não aguento terminar o prato. Mas deixe estar, logo passa a dor, logo para esse barulho...
Agora o sono, amanhã eu compro esse tempero!

   
Conto publicado no Livro de Ouro do Conto Brasileiro Contemporâneo - Edição Especial - Julho de 2015