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Nívea Sabino
Fernandópolis / SP

 

Albertina

As batidas fracas do meu coração são acompanhadas pelo relógio de cabeceira que também bate vagarosamente. Os segundos são horas, e os minutos se arrastam... Ah! Pobre de mim, pois nada mais me resta, a não ser ouvir o tic tac do relógio de bateria fraca e gasta pelo tempo. O tempo! Este eu não tenho certeza se é meu amigo ou ferrenho adversário, pois corre devagar consumindo o que me resta de vida, e ao mesmo tempo me enche de esperança de que tudo isso não passa de um terrível pesadelo e breve vou despertar...
O meu pensamento volta ao passado não muito distante, quando eu era feliz, e ela estava comigo: ALBERTINA!
Albertina tão simples, tão linda! Os cabelos negros, ondulados, o corpo flexível e atraente. Não demorou muito para que eu me apaixonasse e me desdobrasse para realizar todos os seus desejos. Tanto fiz que em um dia fosco de Outono nós nos casamos!  
Cada ano que passava mais eu me devotava àquele amor que eu desconfiado, não acreditava ser recíproco. Não da maneira que eu queria e desejava. Passei a seguir Albertina. A vigia-la primeiro de forma velada, depois descaradamente. Até que a mulher que mais amei nesta vida se cansou da minha opressão, do meu amor obsessivo e do meu ciúme sem fundamento.
E Albertina não decidiu simplesmente me abandonar, ou partir para um lugar distante. Ela resolveu ir embora para o infinito.
A maldita. A insensata comprou um frasco de veneno e diluiu em uma bebida amarga e sorveu o doce sabor da liberdade. Não sem antes me enganar, me ludibriar da maneira mais sórdida, torpe, vil e hedionda. Como eu a odiei!
Albertina me abraçou com um calor e um afeto que há muito não me demonstrava. E o meu amor se derramava sobre ela. Aqueles momentos de paixão eu se acaso tivesse a inspiração dos poetas, escreveria um idílio retratando nosso tórrido amor, aquecendo nosso bucólico recanto, instalado no fim do mundo, como costumava dizer Albertina. Sim, eu escolhi viver ali, longe de tudo e de todos, em meio às montanhas e as árvores. Não me arriscaria a perdê-la para algum outro homem que pudesse acender em seu coração a chama que eu havia apagado.
E então quando esgotado de tanto amor, cai em sono profundo, senti minhas mãos sendo amarradas com violência. Os meus pés já estavam amarrados, e com dificuldade abri os olhos e vi minha mulher de pé diante de mim, ao lado de nossa alcova. A sua boca espumava levemente e ela demonstrava um tremendo esforço para amarrar meu punho com uma corda de nylon na cabeceira da antiga cama de madeira.
Eu estava completamente imobilizado e Albertina trazia nas belas faces uma palidez mortal. Ela parecia fazer um tremendo esforço para respirar. O suor escorria abundantemente pelo rosto, molhando parte dos cabelos negros. Vi de repente, a mulher que um dia me jurou amor eterno, se dobrar sobre o próprio corpo e com ânsias de vômito convulsionar ali, bem na minha frente. Eu não podia fazer nada. Apenas ouvia o relógio sobre o criado ressoar seu tic tac incessante. Então ela me disse:
- Ah! Como eu te amei um dia, Alencar! Eu fui tua esposa, tua amante, tua prisioneira, e por fim tua escrava. Tua obsessão matou todos os meus anseios, meus sonhos de felicidade. O teu ciúme nos impediu de ter uma vida normal, ter filhos, enfim uma família. Mas eu me cansei... O sofrimento de tantos anos me obrigou a decidir pela minha liberdade.  Hoje sou livre... E tossia incessantemente com imensa dificuldade para falar...
- Qualquer outra decisão que eu tomasse você não me deixaria em paz... E eu só quero ficar em PAZ! Hoje sou LIVRE!  Minha mulher repetiu a frase que me doía mais que a corda que dilacerava meus pulsos e tornozelos.
-Fique aí, seu déspota! Ciumento maldito, homem asqueroso! Fique com a solidão que me obrigou a viver... Prisioneiro do próprio destino que me obrigou a aceitar! Estou partindo, indo rumo à liberdade. Quanto a você, Alencar a sua companheira será as batidas do relógio, e que você dure o tempo suficiente para se arrepender de todos os seus pecados.
 E Albertina revirou os olhos e caiu entre a porta do nosso quarto e o corredor que interligava o restante da casa.
Pelos meus cálculos isso foi há duas semanas, talvez.  Tenho sede, fome, as moscas me comem vivo. Parece que o Ceifeiro me ignora, ou se diverte com minha sorte, ri de minha solitária agonia, meu corpo imundo, preso em meus próprios dejetos. 
Porém, diante do meu sofrimento, todas as dores que eu sentia até mesmo a fome e a sede que me enlouqueciam, e a incapacidade latente para me movimentar, nada se comparava àquilo que mais me corrói, o remorso.  
Entre delírios, ainda tento sentir o perfume inebriante de minha mulher... Mas a brisa que entra pela janela semiaberta traz somente o olor acre e putrefato dos restos mortais do meu grande e único amor, Albertina!

 

   
Conto publicado no Livro de Ouro do Conto Brasileiro Contemporâneo - Edição Especial - Julho de 2015