Primeira vez neste site? Então
[clique aqui]
para conhecer um pouco da CBJE
Antologias: atendimento@camarabrasileira.com
Produção de livros: cbje@globo.com
Contato por telefone
Antologias:
(21) 3393 2163
Produção de livros:
(21) 3547 2163
(21) 3186 7547

Arlindo Alberto Pereira Tavares
Rio de Janeiro / RJ

 

Floriano

A noite chega silenciosa e sorrateiramente, sem fazer alarde ou marcar presença, e assim não a percebemos chegar. E desta forma, mais uma vez, aconteceu com Floriano. Um homem simples, mas que aspergia alegria e distribuía simpatia e zelo para com todos que conhecia. Floriano, homem negro, trabalhava como eletricista, e nas horas vagas ainda arrumava um espaço de tempo para ajudar vizinhos e amigos de sua comunidade. 

Um sábado, igual a muitos outros sábados, ele levantava-se de sua cama de colchão duro, já noite feita, para iniciar mais um dia, no caso dele mais uma noite, pois que trabalhava em uma fábrica local, no período da madrugada, fazendo reparos em instalações elétricas existentes, ou instalando novas, mas nunca sem antes fazer um café a moda antiga, em água de "banho maria", saco de pano, e um bule de alumínio que mantinha brilhando de tanto "ariar" toda vez que usava. Seu café parecia ter uma energia social atrativa, pois que era motivo para que seus amigos logo se chegassem para dividir aquele elixir da amizade, amigos que se preparavam para dormir, mas que faziam questão de dividir prosa e café com Floriano. 

Floriano levava uma vida solitária, que era quebrada apenas pela felicidade que seus amigos sentiam em visitar aquela humilde, mas impecável casinha de tijolos aparentes, que um dia ele jurava para si próprio, que iria embolsar e pintar. A meia altura do morro em que vivia, a casa de Floriano era um ponto iluminado de encontro, onde ele com seu jeito meio tímido, mas esclarecido de falar, alegrava a todos que o visitavam. Ele pegava na fábrica a meia noite, contudo sua jornada alegre e feliz tinha início por volta das oito horas da noite, quando sem despertador, ele acordava. Ele poderia dormir um pouco mais, entretanto a companhia dos amigos lhe era importante, e fazer o seu café era um claro sinal de que ele já estava acordado.

Naquele sábado, Floriano, enquanto preparava seu café, ouviu no rádio que uma socialite que acabara de se casar, havia recebido, somente de presentes, um total em valor de duzentos e setenta mil Reais, e que a festa havia sido regada a champanhe francês (acreditou ter ouvido um total de mais de trezentas garrafas). Floriano, que não era um homem de instrução formal, tinha em contrapartida uma educação e uma cultura construída com leitura e observação, se espantou com tamanha demonstração de descaso com a fome e a miséria de muitos. Com sua forma simples de pensar ele se pôs a fazer umas continhas de cabeça e pensou, não faz sentido, ela uma moça famosa, filha de músico e ex-ministro, não podia ser tão indiferente a pobreza e a exclusão social, a ponto de em um casamento movimentar tamanha soma de recursos financeiros, e deixar, a sorte do azar, aquela multidão de excluídos. Parecia para ele ser uma ofensa, era muito desprezo, descaso, vaidade, e prepotência, em uma única pessoa, em um único evento matrimonial. Enquanto o seu café já dava sinais de presença, anunciando que Floriano já estava acordado e disponível para os amigos, ele pensava: duzentos e setenta mil Reais só de presentes, talvez outros duzentos e setenta para a solenidade, vestido, recepção e etc. Arredondando, pensava ele, no mínimo quinhentos mil reais em um casamento. Era um absurdo. As suas engrenagens mentais continuavam tentando digerir aquilo, mas era difícil, pois que na pele, ele vivia o descaso social com que muitas crianças são abandonadas, e pensava que para matar a fome, vestir minimamente e em infraestrutura, com quinhentos reais por criança por mês, ele poderia melhorar em muito a vida delas, poderia assim o total gasto naquele prepotente casamento, manter por um ano, cerca de, em conta de chegada, cem crianças. Floriano admitia que não era contra o casamento em si, mas entendia ser de uma prepotência e arrogância econômica incalculável aquele tipo de casamento, e mais com quem era, que ele acreditava ter um mínimo de preocupação social. Cem crianças mantidas por um ano, contra um casamento, aquilo parecia inaceitável aos olhos de Floriano. E se o custo total fosse ainda maior? Ele, em sua simplicidade, não conseguia ter formas para imaginar o possível custo real daquele casamento. Poderíamos manter mais de 100 crianças em um ano, e se vários destes casamentos ocorressem por mês, poderíamos manter uma “multidão” de crianças, apenas trocando o gasto com casamentos prepotentes e vaidosos, por ajuda direta as crianças que necessitam. Aquele fato feriu Floriano que estava revoltado com o que ouvira. 

O café ficou pronto, os amigos começaram a chegar, naquele sábado contava-se um total de oito amigos, entre eles a sua vizinha mais chegada, a Clarisse, uma negra especial, uma mulher guerreira e prendada, que cuidava de três filhos impecavelmente, uma pessoa de primeira, como ele costumava repetir para todos. Conforme chegavam, todos notavam certa consternação em Floriano, que evitava tocar no assunto, mas acabou sendo vencido pelos pedidos, e desabafou tudo o que estava sentindo e pensando naquele instante. Não lhe faltaram ombros amigos, olhares sensíveis, palavras de força, e uma, das muitas frases, que lhe marcaram o momento foi, “Amigo, sua revolta nos revolta também, mas como é bom ter um amigo como você, ela não tem amigos, tem interessados. Ela se perdeu na arrogância de se fazer importante, mas um dia chegará em que o seu tipo de sensibilidade há de vingar nos corações de todos, e aí não mais existirão miseráveis, pois que não mais existirão imprestáveis, mal-amados, e repugnantes desumanos que somente olham seus interesses".  

 

   
Conto publicado no Livro de Ouro do Conto Brasileiro Contemporâneo - Edição Especial - Julho de 2015