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Teresa Cristina Cerqueira de Sousa
Piracuruca / PI

 

O terço

A reza já havia começado quando ela entrou, seguida de uma amiga que trazia um maço de velas nas mãos. As mulheres levantaram o olhar a tempo de notar que ela devia ter chorado e se puseram a pensar que alguém ainda tão jovem não iria ficar sozinha para sempre.
O nome dela era Alice. Talvez tivesse sido morena, mas tinha os cabelos tingidos de um loiro claro; depois, pensando-se mais era bem estudada, logo devia ter um bom emprego – disse alguém a meia voz entre uma Ave-Maria e um Pai Nosso -, passará em pouco tempo a saudade dele, repetiu outra voz.
Alice, que ficara na varanda da casa enquanto a amiga fora colocar as velas em uma mesinha já destinada a tal fim, mostrava um ar abatido. Embora não fosse baixa, o fato do semblante triste a deixou com uma aparência de estatura mediana. As pernas, cobertas por uma saia branco gelo, tinham, pela oportunidade das aberturas laterais, um tom de quem cuida da pele sedosa. Calçava sandálias baixas pretas. Básico. Parecia ter uma postura de quem é moderada.
Ela ouviu as mulheres puxarem o terço – Tu és grande, Senhor meu, infinitamente – ouviu o próprio coração não ousando sequer levantar os olhos nem mover-se de onde estava. Mas não se incomodou, embora tivesse o costume de falar de cabeça erguida; havia sempre de ver com quem conversava; essa era a boa educação recebida dos pais.
Mas, agora apenas a dor do amado. Um homem de boa conduta e religioso. Namoro antigo, desde a adolescência. Apoiou-se à janela da sala, pelo lado da varanda. Eram daqueles casais que primeiro querem ter casa montada para depois casar. Estava mesmo com que idade? A oração terminara e ela ainda tinha os olhos baixos pensativos.
_ Quer uma cadeira para sentar, Alice? _ disse-lhe a irmã de Daniel.
Sentou-se; as mãos caíram sobre a saia. Todos esperaram que ela dissesse algo; que chorasse, era mais provável.
Houve um silêncio prolongado geral das pessoas que tinham rezado o terço. A amiga que tinha vindo com ela resolveu ficar de pé ao seu lado.
_ Deixe que eu lhe trago um copo d’água_ disse a amiga e retirou-se mesmo sem ouvir resposta.
Levantou-se de repente. As pessoas articularam aonde ela iria que ficasse sentada mais um pouco, era melhor, porém com voz titubeante, pronunciou que queria ficar sozinha um pouco em casa.
Ouviu-se um leve burburinho de que Alice ia embora, vozes abafadas com o nome de Daniel pelo meio, coisas inteligíveis.
_ Descanse _ pediu a irmã do finado, mais preocupada com a dor de Alice que com a dela mesma. Porventura não era Alice que ia casar com seu irmão? Mais haveria lugar no céu para as pessoas que sabiam pensar no outrem.
Aos vinte e três anos, Alice conseguia morar sozinha. Seria por pouco tempo. O casamento estava breve. Foi encarregado de quebrar seus sonhos um acidente na estrada. Daniel não resistira. Agora, as horas corriam até a hora do terço antes da visita de sétimo dia; e voltar para casa, suas coisas. Quase não comia. Pouco era um cafezinho que fazia como se quisesse lembrar de que o amado gostava de tomá-lo de vez em quando.
Subiu para o quarto. Ao pé da mesinha, ao lado da cama, um terço. Acaso teria se lembrado de levá-lo para a casa de Daniel? Era bom ficar com o terço em casa. Sabia onde encontrá-lo. Assim, pois, meu Senhor e meu Deus, para eu poder tê-lo perto de meus olhos e corpo. Quem daria testemunho de suas rezas?
Sem embaraço, retirou a blusa e a deixou cair aos pés. O mesmo fez com o sutiã, a saia e a calcinha. Para que privar-se de suas crenças? Enquanto não encontrasse forças para seguir a vida estaria ali com suas orações. Melhor. As orações é que estavam dando forças para continuar vivendo.
Que a sua intenção não era a de mostrar o corpo nu; não havia desejos entre o toque do terço que passava pela pele – Oh, meu Jesus, livrai-nos do fogo do inferno –, nem um ar de quem quer ver um defunto no tom de voz que rezava. “’Creio em Deus Pai Todo Poderoso, criador do céu e da terra’... como se fosse hoje o último dia de minha vida. Ofereço-te, Senhor, o meu corpo virgem para honrar a memória de meu amado Daniel (faz uma pequena pausa, sem conseguir falar)... Ave-Maria... entre soluços e lágrimas lavo meu corpo de todo desejo da carne. Amém”.
Repetiu na mesma sequência por sete vezes, em cada final dizendo amém, antes fazendo o sinal da cruz. Era muita humildade na voz e nos gestos. A pele do corpo manteve-se arrepiada, em função da fé e dos gestos que foram passando o terço por todo o corpo, benzendo-se, anunciando que estava sendo conservada pura.
Ainda menina ela ouvira falar de mulheres que abrasavam a alma, e que se aproximavam de outro homem mesmo sendo viúva. Com que fervor o espírito não era mais forte que a carne? Meu Deus, suplico-te que me ajudes.
E, acreditando que a reza iria fazê-la manter-se em pensamento e em corpo naquele que fora seu amor único e primeiro, vestiu calmamente a roupa, acendeu uma vela no piso do chão ao lado da cama, fez o sinal da cruz e desceu para um cafezinho antes de ir dormir. Mas um dia. Conseguiria.
Depois de um mês da morte de Daniel, restava ao povo da cidade vê-la entrando na igreja, muito vestida de branco, sempre para a missa da matina durante a semana toda. E, não obstante ao pensamento de todos, isso perdurou até a morte dela. Alice viveu setenta anos.

 

   
Publicado no livro "Misticismo e Fanatismo no Conto Brasileiro" - Edição Especial - Fevereiro de 2015