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João Paulo Hergesel
Alumínio / SP

 

Rainha má

Perpétua não tinha esse nome por acaso; tudo que se referia a ela durava para sempre. Quando se tornou rainha, ninguém mais ocupou seu posto; uma vez que foi considerada a mais bela, não houve outra que assumisse essa posição; desde a primeira vez que fez um feitiço, se declarou uma bruxa por todos os séculos e séculos.
Como toda rainha, morava em um castelo arrebatadoramente grande e com uma fachada em ouro e prata que era incomparável aos demais. Como toda bruxa, não mantinha dentro do palácio o mesmo luxo que se via do lado de fora: gostava das teias de aranha nas paredes e da desordem com os objetos pessoais. Mas, como toda mulher bonita, tinha um espelho.
O espelho de Perpétua era muito melhor do que os eletrônicos ultramodernos, pois não era necessário o mínimo de tecnologia digital para que ele conversasse com sua dona e revelasse a vida de cada um no reino, como se fosse a câmera escondida de um reality show inacabável.
Entre tantos caçadores, servos e bobos da corte existentes em seu mundo particular, as lentes de Perpétua se focavam em Apolo, príncipe do reinado fronteiriço. Passava manhãs, tardes e noites seguindo cada passo do nobre cavalheiro. Ficava feliz quando o príncipe se contentava; sentia-se alimentada quando o príncipe comia algo. Vivia de osmose.
Obcecada por Apolo, a bruxa não se incomodava com as atitudes da alteza, até o momento em que ele compareceu a um encontro real com uma das donzelas mais belas dos arredores. O incômodo fez com que Perpétua se fantasiasse de vendedora de frutas e desse uma maçã envenenada que desmaiaria a jovem para sempre.
Sem desanimar, Apolo conheceu novas moças e se apaixonou pela princesa mais encantadora da região. Mais uma vez, o mal-estar de Perpétua foi despertado e, assim, disfarçou-se de costureira e, com a agulha de uma máquina de confeccionar roupas, espetou o dedo da princesa, que adormeceu sem prazo para acordar.
O tempo passou, e Apolo conheceu uma nova pretendente, a garota com os cabelos mais brilhosos entre todas as dos povoados mais próximos. Perpétua estava tão revoltada que não conseguia nem pensar em camuflagem. Assumindo seu papel de bruxa, sequestrou a garota e prendeu-a na torre de seu castelo.
Vendo a tristeza do príncipe, Perpétua percebeu que, em vez de fazer apenas o mal, poderia, pelo menos por uma vez, tentar uma coisa boa. Mas o benefício precisava ser recíproco; portanto, vestiu-se com as pomposas roupas concebidas por uma fada-madrinha e resolveu se apresentar a Apolo.
O jovem alourado cavalgava pelo bosque quando, de trás de uma amoreira, Perpétua se apresentou com piscadelas e muito afeto.
– Afaste-se, para seu próprio bem. Estou amaldiçoado e todas as que se aproximam de mim acabam tendo um final trágico.
– Não se preocupe. A responsável pelas fatalidades sou eu mesma, confesso. Quero ser a moça com a qual você dança nos seus bailes. Acompanho sua vida por meio do meu espelho mágico e posso garantir que não há outra pessoa no país com mais capacidade de amá-lo do que eu.
O príncipe saltou do cavalo com a espada em punho, pronto para atacar. A bruxa segurou a espada e a manuseou, ainda que ao contrário, encostando a ponta afiada no seio esquerdo, transparecendo com o olhar um misto de coragem, desespero e aflição.
– Faça com que as lâminas atravessem meu coração. É um favor que você fará a todo o reino, incluindo a mim.
A respiração da bruxa estava forte e rápida e as mãos tremiam, revelando sinceridade e nervosismo. O príncipe tinha uma lista de motivos para ser considerado herói e, nela, não havia o fato de confiar em vilões.
– Por que deseja a própria morte? É um truque para despertar algum tipo de feitiço?
– Se for um truque, que seja para adormecer o sofrimento! É como se existisse em meu peito um caldeirão sem poção mágica: arde no fogo, mas se encontra vazio. E não há torcida de nariz, piscar de olhos, apontada de dedos ou varinha mágica que faça essa sensação parar.
Aos humanos, lhes foi concedido o direito de amar. Assim também o foi às bruxas más, dignas de ações desumanas, mas, sobretudo, criaturas humanas. Perpétua estava indiscutivelmente enfeitiçada de amor por Apolo. Esse sentimento, entretanto, era impossível de ser retribuído: não é porque sapos viram príncipes com um beijo que uma bruxa viraria princesa.
– Desde quando o amor é motivo para morrer?
– Desde que ele é descoberto – a bruxa respondeu, assumindo a emotividade reprimida por tantos anos. – Se você não me mata com a espada, morro gradativamente e com muito mais dor.
Apolo sorriu torto, baixou a espada e a guardou de volta na cintura. Então, subiu no cavalo e, sem dizer nada, deu as costas, dirigindo-se ao palácio e deixando Perpétua com lágrima nos olhos e agonizando com a maior das maldições.

 

   
Publicado no livro "Misticismo e Fanatismo no Conto Brasileiro" - Edição Especial - Fevereiro de 2015