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Cleverson Camelo Silveira
Luziânia / GO

 

A aparição

“A história é a verdade que se deforma, a lenda é afalsidade que se encarna.” (Jean Cocteau)

Alguns acontecimentos transcendem a compreensão humana...

A chuva que há horas esbravejava começou a se silenciar, dando lugar às nuvens que se abriam, enquanto os raios solares rasgavam o céu sobre a rodovia, do lado ocidental do Centro-Oeste.

No rádio do carro um programa de fim de tarde narrava estórias que lembravam o avô de Amadeus nos tradicionais encontros familiares – festas religiosas, aniversários, entre outros festejos –, com sua voz rouca: “Bastava entrar na canoa que ele logo aparecia. Era baixinho e tinha semblante raivoso. Jogava pedras e galhos de pau. Outro dia ele tentou destruir minha canoa com fogo, mas eu cheguei a tempo e pus o Romãozinho pra correr.”

Nostalgia que se confundia com o fim de tarde e o cheiro do cerrado molhado, lançando Amadeus num profundo mar de lembranças. A rodovia era um túnel do tempo e a solidão ao volante lhe conduzia a pensamentos atemporais, até ser surpreendido por um vulto que atravessou diante do carro.

– Que diabos foi isso! – disse Amadeus, na certeza de ter visto uma criança magra e com poucas vestes.

Parou no acostamento, pois sua consciência lhe acusava de ter cometido algo grave. Mas não encontrou nada, nem rastros às margens da rodovia enlameada. Olhou num declive que penetrava mata a dentro, mas não encontrou nenhuma evidência.

Amadeus era um quarentão cético. Respeitava, mas ria das estórias e crendices sobrenaturais que os mais velhos contavam.

Parado na vastidão silenciosa, tentou encontrar uma resposta rápida para o ocorrido, até ver surgir na curva adiante uma Caravan 86... Pensamentos aliviados! Mas..., por pouco tempo. O automóvel apenas passa por ele. Na direção um homem de semblante seco torce o pescoço para apenas observá-lo e desaparecer na descida.

A vista que se perdeu do carro deu lugar, no alto, do outro lado da rodovia, a uma jovem de vestes escuras, que se confundia entremeio aos arbustos. Era magra e tinha os cabelos espalhados pelo rosto. Aparentava estar suja...

– Oi garota! – gritou Amadeus. – Preciso de algumas informações.

Ela não respondeu.

– Você mora por aqui?

O silêncio da garota começava a perturbá-lo ainda mais.

Amadeus tentou se aproximar, mas ela se afastou para uma trilha ao lado, como quem quisesse impedi-lo de atravessar.

– Só preciso de ajuda... Qual seu nome?

– Você não deveria parar por aqui – disse a menina com voz aguda e tímida.

– Creio que deve estar procurando seu irmãozinho.

– Ele não é meu irmão.

– E como posso falar com seus pais?

– Eu não tenho pais!

– Não... tem pais?! E como veio parar aqui?

– Eu moro aqui.

No crepúsculo o Sol se punha lentamente e as sombras das árvores e dos arbustos já cobriam de um breu silencioso toda a região. Sem respostas diante das palavras convictas da menina, Amadeus tentou voltar para o carro. Pensou em pegar o celular e ligar para alguém, talvez o serviço de emergência ou um amigo.

– Telefones não funcionam por aqui. – disse a menina, causando arrepios em um homem já confuso.

Mas antes que chegasse à porta do carro, se deparou com a presença de um menino parado diante do automóvel. Era uma criança de uns nove anos de idade. Estava igualmente suja e vestia apenas uma camiseta e um short, ambos bastante surrados. Descalço, ele parecia não sentir frio.

Amadeus já estava horrorizado o suficiente para dirigir alguma palavra a ambos. Mas não tinha outra alternativa senão tentar um contato amistoso.

– Olá..., qual é seu nome?

– Não fale com ele! – a menina gritou em tom raivoso.

Então Amadeus parou no meio da pista e por pouco não foi atropelado por outro automóvel que passou em alta velocidade. Só deu para ouvir um grito que fugiu com o vento: “Seu maluco..., está louco...!”

– Você não acredita, não é mesmo?!

– Do que está falando, garota...?

– Você é como todos, com seu modo de vida atordoado. Toda essa correria..., todo esse desespero para manter sua vidinha medíocre. Não tem tempo para o que realmente importa. Mas hoje você terá grande utilidade: irá reavivar uma grande lenda.

– Não compreendo o que quer dizer!

– Logo, logo vai compreender...

As palavras de Amadeus pareciam alimentar a raiva do menino que passou a emitir um som estranho, como o som de labaredas em lenha seca. No mesmo instante o carro de Amadeus começou a se deteriorar, sofrendo uma espécie de compactação espontânea. Em poucos minutos o que era um automóvel se transformou em um monte de sucata enferrujada.

Aterrorizado, Amadeus ignorou a menina e correu para a mata através da trilha. Deu de encontro com uma casa abandonada. Se estarreceu ao testemunhar diversas marcas queimadas de corpos humanos espalhadas por todos os cantos, até nas árvores. Sem rota de fuga, viu apenas rastros de fogo que jorravam de um lado a outro no meio do cerrado molhado.

A menina se encontrava sobre uma cerca de madeira parcialmente destruída pelo tempo. Mais próximo, Amadeus pode perceber que seu rosto era negro e não podia ver seus olhos, nem boca ou nariz.

Sobre uma árvore estava o menino em chamas. Agora ele sorria e o som se espalhava por todo o descampado.

Amadeus correu o quanto pode, mas não encontrava mais a estrada. Apenas a flora como um tapete que descia e subia colinas e montanhas.

– Agora você fica – disse a menina logo atrás dele.

– Afasta-te ser maldito! – disse Amadeus em seus últimos instantes.

De repente, dois focos de luzes surgiram lá no longínquo horizonte, fazendo correr em Amadeus a esperançade escapar dali... Eram os faróis de um automóvel. Mas antes que tentasse fugir foi contido pelo menino que saltou ao chão.

Em segundos Amadeus sentiu seu corpo se atrofiando. Seus nervos já não obedeciam aos comandos do cérebro. Sua face e mãos começaram a queimar. Diante dele o menino sorria e parecia se deleitar em prazer ao ver Amadeus se definhando.

– Não vá embora homem...! Irei lhe buscar companhia. – a garota disse isso e saiu como um vulto na direção das luzes dos faróis , enquanto Amadeus ardia em chamas no chão.

 

   
Publicado no livro "Misticismo e Fanatismo no Conto Brasileiro" - Edição Especial - Fevereiro de 2015