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Antonia Cinthya Gomes da Silva
Apuiarés / CE

 

Enfrentando as crendices

Era uma cidade pequena, com poucos habitantes, mas que havia um forte predomínio das crendices populares. Como vários lugares pequenos, Felizlândia era uma cidade em que todos se conheciam e sabiam da vida uns dos outros e, dessa forma, viviam muito felizes. Joana, recém graduada em Enfermagem, retornara a Felizlândia, sua cidade natal, após anos de estudos longe dali. Fora recebida com muita alegria pela família, apesar do profundo pesar pelo falecimento de Seu Epifânio, vizinho e amigo da família. No velório, toda a cidade estava presente e o que mais Joana ouvira fora a expressão “meus pêsames”. Ora, na faculdade ela havia estudado sobre morte e sabia que a família do homem que morrera já estava com um enorme pesar, então não era ideal que as pessoas ainda chegassem jogando os seus em cima. Isso era desumano!
A avó de Joana, Dona Valentina, não saíra de perto do caixão. Joana a chamara várias vezes avisando-a de que bastava olhar e sair, pois somente a família poderia ficar muito tempo próximo, assim como não havia necessidade de passar a noite inteira no velório, pois este também era um momento da família, bastava fazer uma visita. Dona Valentina olhou enraivecida para a neta: “Onde já se viu essa menina que tem um terço da minha idade querer me ensinar as coisas?” [...]
Joana acordou cedo para caminhar pela cidade, ansiosa para rever os amigos. Apesar do falecimento de Seu Epifânio, a cidade seguia seu rumo normal: pessoas passavam para trabalhar, crianças se dirigiam à escola e transportes diversos circulavam pelas ruas. Após longas andanças, retornara para casa.
Estava na época da colheita de algumas frutas típicas da região e, por isso, haviam mangas rosadas e cheirosas, cajus coloridos e apetitosos e enormes graviolas na cozinha de sua casa. Não resistindo ao cheiro das mangas, Joana dirigiu-se à cozinha para fazer vitamina. Rapidamente fora repreendida por sua mãe que afirmava que a menina deveria estar louca por misturar manga com leite. Joana sabia que, como qualquer outro alimento, a manga e o leite podiam causar algum desconforto no estômago, especialmente os laticínios visto que muitas pessoas apresentam algum grau de intolerância à lactose. Entretanto, também sabia que a indigestão causada pela combinação do leite com a manga era apenas um tabu, a combinação dos dois não traria malefícios e nem benefícios, apesar de terem em suas composições altas doses de vitaminas e sais minerais que fazem bem ao organismo. Joana não discutiu e pegou outra fruta.
No fim da tarde, sentada em um dos lados do vasto alpendre que rodeava sua casa, sentido a brisa suave que circulava no ambiente, Joana lia calmamente um livro quando ouviu uma gritaria na cozinha. Era Claudete, a cuidadora de sua avó, que passara mal. A menina percebeu quando alguém disse “dá água com açúcar que ajuda a acalmar”. Quando criança, Joana sempre se perguntara por que davam água com açúcar para as pessoas que passavam mal e, agora, era capaz de entender. A sacarose diluída promove a rápida absorção de glicose pelo sangue, é uma fonte rápida de energia para o organismo e estimula a produção de serotonina, um neurotransmissor responsável pela sensação de bem-estar. Essa sensação pode ter dado origem à crendice. Mas pode ser apenas um efeito placebo: se alguém acredita que aquilo vai funcionar, às vezes, acaba dando certo.
No outro dia, passeando mais uma vez pela cidade, Joana encontrara Sabine, uma amiga que por muito tempo não vira. Convidada para tomar um suco, vai até a casa da amiga. Esta tinha um enorme terçol no olho direito que parecia incomodá-la. A mãe de Sabine trouxe uma aliança quente para esfregar na pálpebra da filha. Joana sabia que aquilo era crendice, mas entendera que era apenas mais um dos costumes que estavam enraizados na cultura de sua cidade. Como Enfermeira, sabia que o terçol no olho de sua amiga era apenas um abscesso (acúmulo de pus) causado por inflamação nas glândulas sebáceas, produtoras de gordura, existentes nas pálpebras. A infecção provocada por bactérias causara dor, rubor e calor. Aquecer a área inflamada era um bom tratamento, o que poderia justificar a crendice, porém, o metal aquecido poderia queimar a pálpebra de sua amiga, além de ser anti-higiênico. [...]
Já em casa e sentada no alpendre com sua família, Joana admirava o belíssimo céu estrelado. Sua avó era uma profunda amante da astronomia e sempre lhe contava inúmeras histórias. O céu estava nublado, mas conseguira avistar algumas constelações que admirava. Rapidamente, mostrou a sua avó uma linda estrela cadente que descia do céu. Dona Valentina, repreendendo a neta, afirmou depressa: “Não aponta que cria verruga”. Joana caiu na gargalhada e novamente foi repreendida pela avó. A menina sabia que as verrugas são causadas pelo papiloma vírus humano, o HPV, que ativa o crescimento anormal de células da epiderme e só podem surgir quando uma pessoa tem contato direto com alguém contaminado. Porém, Joana não discutira e respeitara sua avó.
Recebendo as bênçãos da família, Joana entrou para banhar-se e recolher-se, sendo advertida por sua mãe que não deveria tomar banho, pois estava menstruada. A menina riu e entrou para o quarto sabendo que era mais um dos tabus que reinavam na cidade e em sua família. Ao contrário do que a mãe pensava, o período da menstruação é uma época em que as mulheres devem ter ainda mais condições de higiene.
Passados alguns dias, Joana começara a trabalhar no hospital da cidade. Ela estava consciente do quão difícil seria realizar determinados cuidados de enfermagem em uma população marcada pela predominância das crendices populares. Mas também sabia que tudo aquilo era uma questão cultural que estava enraizada e que a cultura faz parte da história de um povo, não podendo jamais ser destruída. Sua nobre missão era apenas conciliar seus conhecimentos de enfermagem às diversas crenças e costumes da região, para que, assim, pudesse desenvolver uma saúde de qualidade. E isso não seria uma tarefa fácil! 

 

   
Publicado no livro "Misticismo e Fanatismo no Conto Brasileiro" - Edição Especial - Fevereiro de 2015