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Lourival da Silva Lopes
União / PI

 

Cavalo-de-carnaúba

Uma faca, uma palha de carnaúba, uns caroços de feijão e umas embiras de tucum, era tudo que a gente precisava para fazer um cavalo-de-carnaúba. Brinquedo de infância, no interior, era assim: imitação do que a gente seria no futuro. Vendo os vaqueiros tangerem o gado, montados em cavalos, com gibão de couro, aboiando alto, era o fascínio da gente. Ser vaqueiro valente, destemido, corajoso não havia coisa mais desejada. Mas ninguém tinha cavalo. Então, o negócio era cada um fazer o seu, da palha seca da carnaúba. Havia disputa para saber qual era o mais veloz, o mais arisco. É bem verdade que tudo dependia das pernas do dono do cavalo. Montado nesses cavalos, a gente tangia bois de verdade, ajudando o pai, o tio, o irmão mais velho, enfim era uma forma de a gente está ali, ajudando. E aboiando também.
- Sai pra lá, boi. Ô boi da peste!
O curral cheio de gado, trazido das matas do Corrente e da Barriga d’Areia, pelo aboio dos vaqueiros apressados, transformava-se na atração que a meninada gostava de ver. O inverno forte, com chuvas diárias, provocava alagação nas lagoas, matando o pasto que o gado deveria comer. O jeito era juntar tudo no curral, assim evitava que algum deles morresse atolado no alagadiço. À tarde, saíamos à procura de canarana para o gado. Havia muita na beira do rio, principalmente quando ele enchia. A gente pegava a canoa e com uma faca bem amolada, ia cortando e fazendo os feixes. Botava os feixes nos cavalos ou nos ombros e levava-os para o gado.
Um dia, montei no meu cavalo-de-carnaúba, para procurar uma vaca que havia pulado a cerca do curral. Meu pai dizia que não havia cerca de roça naquela redondeza que segurasse a danada, cujo nome era Mimosa. Nem a cerca de seu Domingo Maria a segurava. Mimosa era uma vaca mansa. Talvez por isso meu pai confiou que eu a procurasse. Um menino de oito anos tinha que mostrar que era homem. Meu pai dizia:
- Você já é um homem feito. Tá na hora de começar a trabalhar.
Oito anos, e já era um homem feito, segundo meu pai. E eu acreditava e ficava todo pachola, como dizia minha mãe. Embrenhei-me no mato, montado no cavalo-de-carnaúba, chicoteando-o, de vez em quando. Olhava para trás, via um lastro de poeira se alevantar. Pi-ri-ri-pi-ri-ri-pi-ri-ri-pá. Corria feito um cavalo alazão que meu pai tinha. Não precisei andar muito, encontrei Mimosa. Pastava capim junco na beira da lagoa das coceiras. Puxei a rédea do cavalo e dei meia volta. Dirigi-me à vaca:
- Ô Mimosa, ô Mimosa!
Achei a vaca estranha. Não levantou nem a cabeça, mas o rabo chicoteou no ar.
- O que é isso, Mimosa? Tá me estranhando?
Não sei se ela me ouvia direito, mas do jeito que ela estava, de cabeça baixa, avançou na minha direção, com uma fúria que eu nunca tinha visto. Ainda deu tempo de lembrar as palavras de meu pai:
- Você já é um homem feito.
Puxei a rédea do cavalo, dei meia volta novamente e parti pra cima dela sem medo. A minha sorte foi que meu pai chegou na hora agá, quando a vaca já se preparava para me atingir com os chifres afiados. Na velocidade que ele vinha, agarrou com força o rabo da vaca e puxou para o lado, derrubando-a, com violência. Tirou a faca da perneira e a enfiou impiedosamente no pescoço da vaca. Com mais duas ou três furadas, a vaca foi abatida, ali, na minha presença.
Saí são e salvo, mas, por pouco, não fui eu o abatido pela vaca. Ainda lembro a advertência que levei:
- Filho, você tem que ter cuidado. Não se brinca com bicho. Bicho não tem juízo.
E eu achava que o cavalo-de-carnaúba era de verdade.

 

   
Publicado no livro "Misticismo e Fanatismo no Conto Brasileiro" - Edição Especial - Fevereiro de 2015