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Teresa Cristina Cerqueira de Sousa
Piracuruca / PI

 

Lata d'água na cabeça

A casa era pobre. De pau a pique. Uma salinha logo na entrada com repartição de meia parede para separar o fogão a lenha e, assim, ter-se a impressão de que havia a cozinha. Na verdade, creio que era devido às cinzas que invadiam tudo quando mamãe usava o abano de palhas para soprar o fogo isso porque a lenha de paus da serraria, com madeira ainda meio verde, teimava em querer não pegar fogo. Eu sempre olhando, pelo cuidado de que os resíduos não sujassem os copos de alumínio – ariados com a areia fina das margens do rio – ou chegassem até minha rede de tucuns local onde meus irmãos e eu passávamos quase o dia todo. O único quarto da sala tinha uma cama de colchão de molas. Aposento de dormir e de repouso de nossos pais ao meio-dia. Desse modo, era sempre arrumado. Lembro-me de que, certo dia, fui beber um pouco de água do pote de barro que ficava ao lado da cama, e como era horário de meu pai estar em casa – que boa era aquela água! – eu, mesmo com o cuidado de pisar na ponta dos pés para não acordá-lo, terminei por derrubar o prato de esmalte que servia como tampa do pote e, foi castigo na certa.
Cultivar sonhos era coisa boa. Um poço bem no cercado de casa, com uma tampa de pedra de ardósia e oferecer água para todos os vizinhos. Para mim, os melhores dias da infância foram aqueles em que se podia ficar de papo para cima deitada nos capins do campinho que ficava perto da estação do trem. Criança tem sonhos que invadem a vida toda. Depois de certa idade os pés já não correm mais descalços pela rua em que nascemos. Deita-se é de noite em frente à TV e, feliz quem ainda respira o ar do passado, com o coração nas adversidades da vida busca-se uma solução concreta. Mas eu devia ter alimentado o sonho do poço; isso me estaria sendo útil hoje nesta falta d’água: que eu recordo ainda de como foi difícil ser magra e andar com lata d’água na cabeça.
Vinha eu toda feliz, não dizer que em meus raros momentos de cantar – pois minha voz sem tom não me permitia fazê-lo em presença de outras pessoas – com uma lata nova na cabeça. Sei que foi doideira a minha de enchê-la até as bordas, coisa que aprendi a não fazer nunca mais. Então, uma vaca veio, não sei bem de onde, e parou à minha frente. Estanquei, ou que fiquei me tremendo de medo não sei bem por onde anda o fio dessa lembrança! Então, como andava com umas amigas, resolvi espantar o animal: _ “Eh, boi!” No clarão do sol, nem tive como enxergar direito quando os chifres dela me derrubaram. Um gosto de terra nos lábios e uma dor no braço para jamais mexer com vaca desgarrada de sua cria. A lata ficou toda amassada e fui motivo das conversas ao redor do poço de Seu Lino por vários dias! Felizmente foi apenas uma escoriação no antebraço – que fiz que muito me doía para não ter de carregar água por uma semana, creio: - “Mãe, eu não aguento a dor no braço.” – Choraminguei para minha santa mãezinha. Quero é ser crucificada se criança não faz drama. Eu me vejo como quem manipulava acontecimentos assim para ficar em casa na rede de tucum sentindo o cheiro do feijão que borbulhava dentro da panela de ferro, no fogão a lenha.
Eu envelheci; hoje não aguento ir pegar água numa lata. Acho que nem existem mais as latas de querosene que se reaproveitavam como recipientes para carregar água. Isso era costume aqui no interior do Piauí. Meu corpo hoje é apenas um reflexo da menina magra que fui – por certo os ossos também não têm a mesma força. Eu falo: – “Eu fui aprender a carregar água na cabeça que agora estranho não poder segurar com firmeza um balde nas mãos!”. Meus netos riem e acham que é brincadeira. Até que poderia ter sido, não fosse essa falta de água que me persegue desde a mais tenra infância. Isso está me tirando do sério.
O silêncio da casa. É carnaval. Minhas filhas dormem sem se lembrarem de que a caixa d’água está vazia. Preciso de atitudes. Os anos passam com esta ferida dentro da alma – o primeiro pensamento do dia é para a água. A natureza de meu coração escuta junto a meus ouvidos: esse é um problema, hoje, não somente do Nordeste. E eu... eu com esse cercado grande cheio de plantas frutíferas. Por favor, Deus, faça com meu salário não fique muito apertado no final do mês! – “Alô! É o Senhor Everardo?” (...) “Quanto custa para cavar um poço?”.

 

   
Publicado no livro "Nó em pingo d'àgua" - Edição Especial - Abril de 2015