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Ruandro Knapik
Quatro Barras / PR

 

O céu é maior

         O navio tinha encalhado naquela praia de nome esquisito no mínimo há uns quinze anos. Ou mais. Era tão grande e ainda estava a uns trinta metros da arrebentação, um suspiro de loucura e você esperaria por seu aportar. Era tão real o movimento das ondas, a fluidez do mar e aquele ferro todo ali, estático. Os grandes pássaros costeiros haviam tomado tudo, a ferrugem também. Uma praia da costa da Namíbia, céu nublado, areia escura e vazia, faixa imensa que se misturava com deserto e uma estrada de chão. Deserto de praia, deserto de deserto. Nada, nada.
A névoa de maresia do fim da tarde, e um pescador na linha do horizonte.
Um frio para uma calça de moletom cinza, e uma blusa parecida. Um vento gelado. Delícia.
                Eu andava pela praia como no meio de uma nuvem, com a cabeça totalmente distante, pensamentos em casa, no Brasil. Aquelas férias eram diferentes, eu sabia, lógico, que quando eu voltasse os problemas me esperariam como sempre, mas em especial um brigava por destaque em minhas reflexões: eu queria trocar de carreira, não só de emprego, mas substituir completamente a forma de como trabalhava. Enjoei, foi isso. Não gostava mais, achava chato o que vinha fazendo há quinze anos. Era pouco ser uma coisa só para uma vida apenas.
                O trabalho para mim sempre foi subsistência e meio. E percebi que isso era raso. Tinha que ter sentido. Tinha que ser o fim, não o meio. Agregar valor não para uma companhia, mas para as pessoas. Eu estava com isso me perturbando há uns três anos, desde que meu último colega havia empreendido no ramo de jardins. Como queria aquela coragem. Inveja. Eu estava sendo, com razão no meu entender, um filho da mãe invejoso. Pela ideia que ele teve e eu também poderia ter tido. Pela coragem, pelo desapego que para mim sempre foi tão difícil.
                Andei por aquela praia o dia todo, parava às vezes para descansar e tomar água, comer alguma besteira. Ninguém, ninguém. Ainda tinha que andar até a montanha lá da frente que escondia uma vila nas suas costas e onde também havia uma cama de hostel me esperando. O plano até então tinha dado certo e eu teria um resto de dia de ausência e silêncio.  E uma noite calma e tranquila.
                O que era aquele ponto rosa dentro do mar? Sem nenhuma forma de transporte por perto percebi que mesmo difícil imaginar como, alguém estava lá surfando de barriga. Era uma mulher, pelo que vi dos seus lindos cabelos compridos e predominância rosa nos trajados. Como ela veio parar aqui? Trouxe a prancha como nessa caminhada toda? Que louca. Água gelada, mas ondas ótimas. Sentei-me para assistir. Éramos eu, o mar, a moça e o navio na linha do meu horizonte, mais distante, para trás.
                Ela não demorou em vir para a praia e um pouco assustada me perguntou as horas. Sorriu, talvez ela percebeu que tinha mais tempo para o mar ainda naquele dia. Disse seu nome, Janet, e sentou-se do meu lado.
                Cinco minutos de silêncio. O mar ao fundo, som agradável. Eu de olhos fechados por alguns instantes. Caí de costas na areia, deitado olhava o céu cinza e como o vento fazia as nuvens se mexer. Como é bom.
                - Arthur, meu nome é Arthur.
                Logo descobri que ela era política. Uma deputada no seu país, ou algo semelhante de quem legisla em nível nacional, eleita democraticamente. Férias também. Queixava-se que a vida pública roubava seus tempos livres e que suas férias precisavam ser sempre em lugares longes e vazios, para ter paz. Não pelos incômodos de tantas pessoas que a procurariam e sim em função de um esvaziamento mental programado. Reciclagem de seus sets. Esquecer para aprender.  
                Gostei desse termo de esvaziamento mental.
                Estávamos no mesmo hostel, era o único mais perto. Ela tinha caminhado até ali para surfar com o navio encalhado, sozinha. Se tudo que é fixo no mundo é previsível, os prédios vão ser e estar sempre prédios, com as ondas era ao contrário, imprevisíveis, surpresas. Ela queria sentir isso ao lado de um fracasso humano escancarado – o navio fixado para sempre neste imprevisível do movimento do mar.
- O homem sempre perde, nunca ganha. Ele e suas coisas morrem – falou olhando fixamente o navio e as ondas que o encontravam e se chocavam com tanta força...
                - Você acha que nunca se atinge a plenitude?
                - Utopia. Claro que não, me respondeu. Mesmo depois de trinta anos fazendo uma mesma coisa, mesmo quando seus questionamentos sobre a sua vida passarem, quando você não tiver mais sonhos para sonhar, nem planos para realizar, quando você não pensar que deve fazer mais coisas nessa única vida que tem e sim curtir o resto que lhe falta – falsamente você se encontrará na plenitude? Só viverá, só colherá. Plenitude do que? De se questionar?
                - Você diz que eu vou saturar?
                Riu. Saturar era uma palavra técnica demais, me disse e continuou: você vai é enjoar. Se cansar. Vai esperar. Acredite, não se alcança a plenitude desse jeito.
                - Tem tanta gente que parece ser tão feliz.
                - E elas devem ser. E você?
                - Não sei te responder. Eu feliz? Quero trocar de vida, Janet. Estou exaurido em ter uma profissão e só um modus operantis, sabe? Somente alguns dias do ano para mim. O Mim um dia vai acabar e dele nada se restará para provar das oportunidades que eu poderia ter. Vale a pena se dedicar tanto?
- Quem desse Mim vai estar lá para dizer se valeu a pena, se foi pouco, se sentiu falta, se foi incompleto? Por que incompleto? Por que se preocupa tanto com a cobrança de você mesmo, se o você mesmo não vai existir em breve?
- Uma vida é tão pouco para ser uma coisa só. Enquanto esse Mim existir, ele não pode ser só isso, só uma coisa.
- Imediatistas e ansiosos. Um pouco de ausência de valores no que você fala. Também penso que seus referenciais estão vazios. – E riu de novo. Você é um Y clássico!
Janet me apontou sua prancha, disse para eu cair na água. Não parar até aprender. E quando aprendesse eu me entediaria. Lembro-me dela gritando: aposto!
                - Para se encontrar, tem que saber procurar. Quem é você Arthur?     

 

 

   
Publicado no livro "Nó em pingo d'àgua" - Edição Especial - Abril de 2015