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Gustavo Barco Hernandez
São José do Rio Preto / SP

 

Real devaneio real

                 Ele fumava um lápis preto B, daqueles que escrevem forte e borracha nenhuma no mundo apaga suas cicatrizes. A fumaça, a qual fica a cargo do esforço de sua mente dois por dois em entender as palavras que sambam à sua frente, compunha o cenário de um bar.
        Estava ele sentindo a brisa, sentindo os pássaros, sentindo o cheiro de mato. Estava ele num bar.
        Como a lentidão das asas de um  beija-flor se esforçando  para mantê-lo no ar, uma mulher... , ca...mi-nhan;do...sor-ri-den-te...em, sua, ...di-re-ção, agarraodesajeitadamente nointuitoúnicodedemonstrartodaafeiçãoquejulgavaterporLeonardo.
        Ele rejeitou ela tentou.
        Os transeuntes do bar – pedestres e ciclistas – fizeram de seus olhos asas de beija-flor. A mulher, de ação desenfreada, cheirava vodka; daquelas que se compra com seis moedas e ainda voltam duas de troco. Leonardo era dado a essas contas. Leonardo sabia! Leonardo sentia!
        E assim o fez a vida toda, até morrer vítima de atropelamento do pâncreas esquerdo, quando terá na conta do tempo impressionantes 254.
        Com toda aquela proximidade, a terra dos mortos, guardada por grades sobrepostas e semipodres, havia mostrado seu túmulo mais profundo, fazendo grave denuncia da vida marginal à qual o coveiro estava submetido.
        Nessa vírgula da vida, sentia apenas a efervescência do vermelho; o vermelho subia. Mas como nada é para sempre, na vírgula seguinte, o vermelho desceu.
        Por mais que fosse apenas o instinto de sobrevivência do homem falando mais alto, saltava à vista de todos os juízes o modo errôneo com que Leonardo comandava o imbróglio. Assim sendo, não faltaram manifestações coléricas repudiando tal ato. E como se não bastasse, como se precisasse daqueles extras advindos sabe-se lá de onde, no desembrulhar das prendas, a mulher bateu com as ventas e, agora mais do que antes, o vermelho decorava a cena, juntamente com uma das grades caída ao chão.
        O dono do estabelecimento – desse e de muitos – de quase todos – via tudo como sempre o fez, e tão logo seus olhos notaram o fato, apoderou-se da dor da mulher, tendo em vista o íntimo grau de parentesco entre eles, como, aliás, tinha com todos.
        Leonardo, sentenciando-se à reprovação do velho ser, intentou desferir larga corrida, porém, nem mesmo finalizou o pensamento para dar sequência à ação, sentiu três dedos finos e desesmaltados acariciando a parte posterior de seu pé central, atitude esta rapidamente retorquida. Sendo eles dois pontos em tal ocasião, desejava para todas as retas do mundo a morte.
        E como ao homem foi dada a força e à mulher a inteligência, Leonardo, sagrando-se vencedor na desavença, escancarou o que estava à frente e bateu asas com grande afã. Depois de muito correr, ao contornar duas quadras, cinco latas de lixo e quatro postes, parou e, prostrado, não teve tempo de perceber que, ao cerrar as portas que deslumbram o mundo, as quimeras fizeram-se presentes em sua vida.
        O carro havia chegado.

 

 

   
Publicado no livro "Nó em pingo d'àgua" - Edição Especial - Abril de 2015