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Rubens Alves Ferreira
Taguatinga / DF

 

Moleques IV - A mãe

 

Começo de ano. Desembarcou na porta do Carlinhos a sua mãe. Veio ver como estavam as coisas e votar nas eleições municipais. Em Formosa o embate entre a Arena e MDB quase sempre resultava na vitória deste. Tempo bom! Tempo de política. Colecionar santinhos e correr atrás de caminhões de propaganda com as músicas de campanha. As carreatas - muito barulho e animação. A mãe aproveitou, também, para trazer alguns mantimentos da roça, como arroz.  O arroz era trazido com casca e tinha que ser levado à máquina de beneficiar. Quando não se pagava o preço em dinheiro, o dono da beneficiadora ficava com um terço do produto pronto. O que era entregue como um saco, era devolvido abaixo da metade e com a qualidade de “catete”. “É por causa da casca” – dizia o senhor da máquina. Apesar da alegria em rever a mãe, Carlos sabia que seria ocasião de prestar contas. A avó despreocupava a mãe, dizendo que estava tudo em ordem. O garoto estava bem na escola, ia passar de ano, fazia pequenos serviços para os vizinhos; e, no mais, brincava com os outros garotos sem maiores preocupações. Acontece que um dia, tardezinha, além dos avós e de Joana, estava presente o primo da mãe – Joaquim.
– Prima Mariana! – começou o Joaquim, olhando para o menino com ar de deboche e com nítida intenção de pôr lenha na fogueira, açular – vi o Carlinhos com uma turma de menino estranho, perambulano pela cidade; já vi ele dento do rego perto da casa da Tia Dinah. – Falou e passou a mão pela cabeça do garoto em gesto de benevolência. Dona Mariana deu uma olhada para o menino que ficou logo sabendo que estava agendada uma sessão de entrevista e ajustes.
Mais gente chegou e a conversa se prolongou até a noite. Carlinhos foi dormir convicto de que no outro dia escaparia da reprimenda; já que haveria tempo para a mãe dormir, esquecer ou contemporizar a denúncia do primo. No outro dia, assim que Carlinhos chegou da escola, sua mãe o chamou de lado e pediu que ele fosse aos lotes vagos das redondezas e trouxesse um bom cipó de fedegoso. “Mas trais um bom, sinão vai ter que voltá e a peia é dobrada”. Carlinhos saiu resmungando e choramingando e dirigiu-se ao mato a procura de um pé da planta, não muito grosso. Não conseguiu quebrar o primeiro; e o deixou macerado. Procurou por outro de tamanho e espessura média, e o arrancou pela raiz com esforço; o pé surgiu viçoso e cheio de formigas. Entregou-o a sua mãe que o fez dirigir -se ao quartinho do fundo depois de dar um acabamento no cipó.
 – E intão? Como é a história da vadiage?
 – Nada não mãe. É brincadera do Juaquim. Só saio quando vó manda e dexa. Só brinco qui perto.
 – Tá chamano os mais velho de mentiroso? – ameaçou a mãe.
Apesar de outras desculpas e suplicas e a avó pedindo para deixar isso para lá, Carlinhos não escapou de algumas cipoadas de fedegoso. Quando foi liberado saiu chorando. Mais de raiva da injustiça que da surra, chutou a parede da privada e a mãe vendo aquilo o chamou de volta. Carlinhos fez gestos e muxoxos de desânimo e não queria voltar. A mãe disse: “Não me fais i aí, que sinão é pió”. Ele chorando aproximou-se para receber o reajuste da malcriação. Após a correção, sua mãe batizou o cipó de São José e o dependurou na parede da cozinha, recomendando ao Carlinhos que dele tomasse conta para futuras lições e consultas. Como logo o cipó se apresentasse ressequido e sem viço, foi substituído por uma tira de couro que ficou de prontidão, ainda com o nome de São José.
Ainda durante a estadia da mãe, haveria uma partida de futebol de times uniformizados. Mais ou menos sete contra sete. Um time de camiseta e o outro sem. O campinho era de terra batida e úmida, mais em formato oval, que retangular, com traves amarradas com barbante em cada lado. As regras e o juiz, como sempre, nessas peladas é o grito – quem grita mais e mais alto, leva -. Regras melhores que as dos velhinhos da FIFA. Não existe impedimento e nunca houve problema por isto; não há número fixo de jogadores nem de substituições, não há cartões, nem expulsão. O jogo termina ou por tempo ou por placar. No caso, quem fizesse dez gols primeiro ganharia a peleja. Carlinhos não podia desaparecer da vista da mãe, então quando esta parecia distraída na prosa com os sogros, ele corria para o campo que ficava a uns 500 metros, deixava as sandálias atrás do gol e entrava em jogo – “tá quanto:” – perguntava – “3 a 1 pra eles” – respondia o goleiro. Alguns meninos jogavam descalços, outros com Conga e poucos afortunados e esporádicos com Kichute. Carlinhos ganhou um Conga que era reservado para ir à escola. Entrando em jogo, Carlinhos ficava largado lá pela lateral e participava pouco da peleja, pois quase não recebia passes e se concentrava no desarme dos adversários. Volta e meia saia um mancando, reclamando das caneladas do Carlinhos. Este jogava preocupado com a mãe e com o São José. Saia correndo de volta e sentava-se próximo da visão da mãe e dos avós. Ofegante e tentando parecer casual; esperava nova oportunidade de correr de volta ao jogo que depois de algumas incursões, acabou por desistência devido ao excesso de tempo e com o placar de 7 a 5 para o adversário.
Carlinhos tornou-se o segundo jogador mais requisitado; depois do dono da bola. Bola dente de leite (confeccionada com plástico duro e resistente) que ardia nas canelas, pés e mãos dos goleiros.  Carlinhos era o responsável pela lavagem das camisas, após se cotizarem os outros jogadores para comprar o sabão em barra. Os garotos se uniformizaram, depois que um entusiasta doou umas camisetas brancas usadas para a formação da equipe. Para escolher o nome, uns não queriam Flamengo, outros não queriam Botafogo, entre outros times. Foi então, definido e batizado o time de Tiradentes. Carlinhos recortou de um pedaço de tecido preto o número cinco e tomando de agulha e linha branca, costurou-o sobre a sua camiseta, depois que sua avó rindo de sua costura, o ensinou a alinhavar. Os outros garotos pintaram o número com caneta.
Carlos estava sempre disponível para pequenos serviços a que era requisitado pelos parentes e vizinhos. De vendedor, faxineiro, comprador de pequenezas, recados e entregador de encomendas, fazia de tudo que uma criança pode fazer para conseguir alguns trocados. Nessas ocasiões de pequenos serviços, geralmente se desligava de Jericó e da turma.

 

 
 
Conto publicado no "Livro de Ouro do Conto Brasileiro" - Junho de 2016