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Vicente Izidro de Souza
Ubaitaba / BA

Aniversário e Carnaval

 

 

A rua estava vazia. Nem parecia que estávamos em festa, afinal era carnaval. Fazia sol, os foliões provavelmente estavam dormindo no intuito de recarregarem suas energias para mais uma noite de alegria. Enquanto eu fazia minha caminhada por estas ruas desertas, imaginei como aquele ambiente deveria explodir de felicidade com muitas pessoas pulando atrás do trio elétrico ao som do axé nesta cidade do recôncavo baiano. Este instante me fez lembrar muitas histórias; momentos muito marcantes destes meus 70 anos de vida.
Foi por este motivo que acabei recordando-me do Café, um grande amigo de infância. Muitos pensavam que este era seu apelido, mas foi assim que dona Jacinta o registrou. Segundo ela, café era a bebida que mais gostava. Ao sentir o cheiro do café, seu coração palpitava mais forte e este foi o primeiro nome que desejou dar ao seu mais novo filho. Café nasceu no carnaval de 1879, no mesmo dia em que nossa cidade comemorava o status de município, deixando de ser Distrito de São Simão, para tornar-se a Estância Climática de Santa Rita do Passa Quatro. Nesta época a cidade crescia bastante com o desenvolvimento das lavouras de café e com a chegada de imigrantes italianos. Meu amigo nasceu em uma família com poucos recursos financeiros, não conheceu o pai e sua mãe trabalhava bastante como costureira. Eles moravam no bairro onde praticamente todos os negros da cidade viviam. Infelizmente naquela época era muito comum existirem bairros com separações étnicas, que ainda existem de forma mais velada. Ele era o único menino do bairro Santa Ifigênia estudando conosco na Escola Santo Antônio Maria Claret.
Café era muito esperto e alegre, mas eu comecei a perceber que no período de carnaval o menino que alegrava nossas manhãs ficava muito quieto e estranho. Nesta época Café tinha oito anos, eu estava completando sete. Meu aniversário foi comemorado no início do ano letivo em ambiente escolar. Por encomenda dos meus pais, as irmãs claretianas fizeram tortas e salgados que satisfizeram a todos os meus colegas. Neste dia percebi em Café um semblante muito triste. Ele nem sequer comeu a torta, dizendo não sentir-se bem. Ao chegar em casa contei à minha mãe, que logo decidiu levar-me à casa do Café, pois assim verificaríamos como ele estava e levaríamos um pedaço da torta reservado para ele e sua mãe.
Fomos! Quando chegamos descobrimos que Café estava na casa da avó materna, mas a sua mãe nos recebeu e entramos naquela residência muito bem cuidada, que exalava cheiro de jasmim. Foi neste dia que eu conheci a realidade daquele menino. Ele tinha mais sete irmãos e era o mais novo deles. Dona Jacinta disse que seu filho gostava muito de aniversários, mas ao descobrir que nunca teve uma festa, estava triste. Ela explicou que quando Café era mais novo, até os seus seis anos, ela o enganava dizendo que a festa de carnaval era em comemoração ao seu aniversário. Ele era um menino muito feliz neste período. Todos da casa iam ver os desfiles, diversos pierrôs e colombinas. Era um momento mágico; todo brilho e toda alegria daquele povo em comemoração ao seu nascimento. Dona Jacinta também disse que Café ficava inebriado, pois para ele eram momentos inenarráveis. Seus irmãos não tinham festa de aniversário, e a festa dele era feita por toda a cidade, com muito humor, alegria e muita serpentina sendo disparada em sua direção.
Tudo isso acabou quando um de seus irmãos disse que carnaval era uma festa realizada por todo o país, e que não era uma comemoração ao seu aniversário. Desde então Café ficou muito triste, pois muito mais do que hoje em dia, comemorar o aniversário era importante, tanto entre crianças como entre adultos. Eu tive uma grande ideia, mas não sabia como colocar em prática. Tínhamos um colega chamado Zé que desde os cinco anos de idade demonstrava grande talento com a música. Pensei que Zé poderia me ajudar nesta missão de trazer mais felicidade ao nosso amigo, pois logo chegaria o carnaval. O aniversário de Café estava próximo, esse era o motivo de sua tristeza. Zé entendeu minhas intenções e disse que poderíamos organizar uma orquestra para apresentarmos no aniversário do nosso colega. Ele quis ser o regente e eu concordei com a ideia, mas disse que após a apresentação, poderíamos desfilar no colégio, ou se fosse permitido por nossos pais e pela escola, desfilar pela cidade. Só tivemos dez dias para ensaiar.
Zé selecionou os componentes do grupo. A direção da escola embarcou em nossas ideias e minha mãe encomendou tortas e salgados às irmãs claretianas. Dona Jacinta ajudou na costura das nossas fantasias e disse que faria um bolo de fubá, pois este era o preferido do seu filho. Acordei cedo, Zé jogava pedrinhas na minha janela. Era o dia da surpresa ao nosso amigo, o dia que tanto nos preparamos para homenageá-lo. Eu morava em frente à escola e vi que Dona Jacinta já estava lá com o lindo bolo de fubá. Desci as escadas, abri a porta para o Zé. Corri e escovei os dentes, vestindo logo em seguida minha fantasia. Dona Jacinta estava conversando com o Zé na porta de minha casa, toda sorridente agradecendo por nós proporcionarmos este momento ao seu filho.
Café sempre ia sozinho de casa até a escola, mas neste dia meu pai foi buscá-lo de carro, deu umas voltas pela cidade enquanto nos preparávamos na escola. Demos sinal verde, ele chegou. Meninos fantasiados de pierrôs do lado direito do pátio e as meninas de colombinas, no lado esquerdo. Cantamos os parabéns e depois tocamos e cantamos lindas marchinhas de carnaval. Nunca tinha visto tanta felicidade naquele rosto, tanto que ele até chorou na hora dos parabéns.
O bolo de fubá foi o primeiro a ser partido; o primeiro pedaço Café ofereceu à sua mãe. Disse saber que o carnaval não era a sua festa, mas que sobre isto estava enganado, pois não foi à toa que nasceu neste período e não foi à toa que Deus lhe deu família e amigos tão queridos. O bolo de fubá fez muito sucesso entre os meninos e meninas, tanto que dona Jacinta teve a ideia de fazer para Café vendê-lo na escola. Eu particularmente era apaixonado por aquele bolo, até que uma infestação do caruncho em cafés e grãos em nossa cidade, fez com que dona Jacinta parasse de fazê-lo.
Café cresceu, enfrentou o mundo, ajudou toda a sua família, tornou-se juiz federal. Casou-se e teve um filho.
Zé cresceu, tornou-se Zequinha de Abreu. Ele compôs muitas músicas famosas, entre elas Tico-Tico no Fubá, composta em homenagem a dona Jacinta, que tanto reclamava enquanto catava os carunchos do fubá.
Eu também cresci, mas continuo com espírito de criança.

 

 
 
Conto publicado no "Livro de Ouro do Conto Brasileiro" - Junho de 2016