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Neri França Fornari Bocchese
Pato Branco / PR

 

Os mortos estão onde?

Conta-se que num passado não tão remoto, aqui pelas paragens de Bom Retiro, nome pra lá de sugestivo - eram Terras de Ninguém - quem chegasse se apropriava de quantas quisesse. Marcavam as divisas: daquele galho de Pinheiro até aquela Imbuia lá no pé do morro.
O galho, secava, era cortado, ainda caia com os vendavais que sempre existiram e as imbuias eram tantas. Não havia dificuldade em encontrar outro galho, uma linda imbuia, um pouco mais distante.
Bom Retiro recebia refugiados até de países vizinhos. Era só atravessar o Rio Uruguai, em guarani, caracol de água doce, quando vindos do Sul. Se fosse preciso, passar o Rio Iguaçu, ao Norte, a alma ficava livre de qualquer acusação. De acordo com decisões nadas nobres. Na Lei dos Homens, ditam-se veredictos próprios para enganar a própria Consciência.
No Rio Iguaçu, muitas águas, tantas como o mar, não tão distante assim, logo ali próximo das Cataratas, em tempo de pouca chuva passava-se quase a pé enxuto pulando de pedra em pedra. Os mais atrevidos passavam pelas pedras das Cataratas, recebendo no rosto, o respingo das águas, ainda límpidas.
Havia o Estreito do Uruguai, com uma pernada mais caprichada pulava-se de um lado para o outro. Assim, as desavenças ficavam distantes. Quando a fuga era mais apressada ou precisava ser despistada caminhavam a pé escondendo-se no mato, dormindo nos jiraus, para se protegerem dos animais.
Se era possível, fugiam com a montaria, geralmente a Mula, procuravam um remanso, no Vau do rio era fácil transpor o outro lado. A água de pouca profundidade, o animal, por instinto sabe nadar. A bruaca, já era sabiamente de couro para não molhar os pertences…
Entre os muitos refugiados da Colônia Bom Retiro havia a Família dos Pinto de Camargo. Essa, pelas suas atitudes dividia-se em Pinto Brabo e Pinto Manso, fato contado por seu Osório.
Entre eles, um, o mais safado Pacífico Pinto. Não trazia nada do próprio nome. Ligeiro, truculento foi angariando amigos, como os inimigos. Logo se achegou às Autoridades. Conseguiu o cargo de Inspetor. A autoridade lhe conferia direito para as barbaridades. Um dos grandes safristas da região. A Serra da Fartura, ao longo do divisor com outro Estado brasileiro eram de sua propriedade. Ou ao menos, assim ele dizia.
Outros moradores dessas terras viviam de favores, ficavam até que Pacífico decidisse. Muitas vezes eram mandados embora no cair da noite. Não tinha discussão, era preciso obedecer. Nem vizinhos, ele permitiu, pois largava a porcada, outros animais nas lavouras, aonde brotava o milho. Não era possível nem tocar os animais. A encrenca estava feita. A ofensa era pessoal. Se fugisse um animal de algum morador era capturado, incorporado ao seu patrimônio Tinha, segundo ele, o Direito adquirido sobre os homens, os bens desses, fosse quais fossem.
Pela esperteza, era dono de muitas roças. Os primeiros a serem contratados foram os ingênuos, ao mesmo tempo espertos caboclos. Eles eram vigiados por homens de confiança do famigerado Pacífico. Recebiam alimentação para não voltarem aos seus ranchos, antes de concluírem o serviço. Dormiam amontoados, num casebre de chão batido, juto a um brasido sempre aceso. Não podiam fugir sem concluírem o trabalho.
No último dia, a refeição era especial, nada de feijão com torresmo e quirera. Para o pagamento precisavam acompanhar o Patrão, até o local do acerto.
Tudo premeditado, durante o trajeto. O mato era abundante, disfarçava qualquer ação. A certa altura, já cansados de andar, quase sempre embebedados, na hora do almoço, havia uma trilha a especial. No meio dela  um valetão, encoberto por galhos e macegas. Ali, sem testemunhas os caboclos eram cercados, imobilizados pelos comparsas. Enfiavam-lhes os dedos nas narinas, puxando a cabeça para trás, os degolavam, como bichos do mato. Jogando o corpo ainda com os músculos em movimento, na cova.
Como mesmo no mato, há quem enxergue, escute muito bem, logo os caboclos de Bom Retiro, todos sabiam desse trágico fim. Sem esquecer: os corpos cheiram, em decomposição atraiam animais.
A mata para o caboclo era a extensão do pátio de casa.  Fazer o que, contra aquele vivente que tinha o encardido ao seu lado?
Pacífico Pinto, nunca andava sozinho, era em comitiva. Logo não arrumou mais trabalhadores pelos arredores da pequena Villa.
Onde morava, era ele homem de Bem. Bem visto, amigo das autoridades, bem vestido, bom de prosa. Foi fácil recrutar trabalhadores experientes em derrubada. Dizia ele: os caboclos não sabem nem ver o lenho do tronco, não conhecem a rota de escape, não sabem fazer o corte em cunha.
Os trabalhadores vinham na segunda-feira, passavam a semana ou até 15 dias. A primeira leva foi dos que sabiam derrubar o mato. Eram robustos, recebiam mais pelo trabalho. Derrubavam no muque, alqueires e alqueires de mato, por serem especializados, donos da própria ferramenta. O machado, facão, a serra transversal, a lima para afiar os dentes do serrote. Enfim uma técnica especial. A foice, para as roçadas, a enxada para ajudar no plantio, na colheita. Esses trabalhadores recrutados, um pouco mais distantes. Eram contratados pelos empreiteiros.
O pagamento feito sempre com testemunhas ainda eles recebiam uma boa gratificação. Ficavam felizes, com o dinheiro no bolso. Quase sempre no sábado, ao meio-dia. Depois de um bom almoço, da cachaça produzida ali mesmo no alambique que já funcionava junto às roças, pois tinha um objetivo especial. Faziam a festa. Muitas vezes ganhavam até uma garrafa, quem tinha o casco ou o cantil.
Como a volta para casa era pelas picadas, iam a pé ou a cavalo. Logo mais na frente, depois de umas horas de caminhada eram atocaiados pelos capangas.
Depois de mortos, o dinheiro recuperado, a cachaça também, o próprio animal de montaria, mudava de dono. Os corpos eram amarrados em pedras para não boiarem, atirados nas águas tranquilas do Rio Pato Branco ou do próprio Rio Chopim. 
Passado alguns dias as mulheres ou outros familiares vinham em busca do trabalhador. Nunca o encontravam.
Tudo havia sido feito as claras, o pagamento, foi vultoso. Cansados, alguns dias depois, ainda desconjuravam o pobre morto. Devia ter voltado para Santa Catarina ou para o Rio Grande do Sul, deixando-as sozinhas com os filhos pequenos.
Como segredo entre mais de um, não dura muito tempo, o compadre deu com a língua nos dentes, contou a uma das viúvas, o sucedido. A denúncia foi feita as autoridades por alguns corajosos. Mas quem se atrevia a prender tal sujeito? Em liberdade contratou até advogados.
No dia do julgamento, lá nos idos de 1928, a Intendência, ficou repleta de parentes das vítimas. A sala não comportava muita gente, os arredores foram sendo ocupado por homens sedentos de justiça. Pelos filhos órfãos. Como costume da época, todos armados. com muita munição.
Não resistiram o fim do julgamento, descarregaram suas espingardas, revólveres no Pacífico Pinto. Recebeu tantos projéteis, como os mortos inocentemente.
Por justiça, quem vai procurar os mortos no assoalho dos rios?
Não há mais vestígios, foram muitas almas de trabalhadores sepultadas nas águas tranquilas, ainda na arapuca das trilhas ou na mata de Araucária.

 

 

 

 
 
Conto publicado no livro Quem vai pegar o morto?" - Fevereiro de 2016