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Fernando de Castro Dutra
Brasília / DF

 

Sonhos do Além

Eram três da madrugada quando acordei assustada. Olhei para um lado, Nícolas dormia profundamente; do outro, o bebê estava confortavelmente acomodado em seu berço, mas com os olhos arregalados e os bracinhos para o alto e se mexendo como se tentasse tocar algo no alto e a boquinha balbuciando sons sussurrados, em meio a alguns sorrisos, como se ele quisesse preservar o nosso descanso. Permaneci imóvel por alguns minutos, observando o meu anjinho, agradecendo a Deus por sua vida e pensando como os meses de gravidez e o cansaço dos últimos dias haviam valido à pena, até que ele me descobriu acordada e, vagarosamente, virou o rostinho em minha direção, esboçando o mais gracioso dos sorrisos. Eu, é claro, me derreti toda, levantando-me e indo em sua direção. Sentei no puff ao lado do berço, acariciando seus finos e delicados cabelos.
– Eu te amo, meu querido – disse a ele, sussurrando.
Mas o sono logo tomou conta de mim e, sentada, deixei que minhas pálpebras se fechassem. Então, num abrir e fechar de olhos de um súbito cochilo, vi, nitidamente, o rosto de uma mulher jovem na face de meu filho. Dei um forte suspiro para trás e senti um arrepio saindo da nuca e se estendendo pelo resto de meu corpo. Um calafrio me abateu, fazendo-me olhar ao redor do quarto escuro. Cobri-me com um edredom, voltei-me para o bebê e percebi que ele adormecera e que as horas já se avançavam. Nícolas nem se mexera. Ao deitar novamente, senti outro arrepio, mas desta vez iniciado em minhas pernas, passando pelos braços e ombros e atingindo a nuca. Foi então que vi o vulto de uma mulher vestida de branco, com manchas de sangue, passando de um quarto para o outro. E apesar de ela não olhar diretamente para mim, eu pude ouvir sua voz, também sussurrada:
– Salve o bebê...
Tomada de vez pelo arrepio, dei um grito que fez Nícolas acordar assustando, batendo com sua cabeça na parede. Mas meu bebê continuou dormindo depois de um ligeiro resmungo.
– Ai... o que foi, Isabela? – Perguntou Nícolas, esfregando a mão na cabeça.
– Ah... desculpe, querido. Acho que tive um pesadelo. Tenho estado tão cansada ultimamente, que não sei quando estou dormindo ou acordada.
– Então volte a dormir, sim. Ainda temos mais alguns minutos antes do batente.
Nícolas virou e logo adormeceu. Eu nem bem fechei os olhos e o relógio despertou. Como nas últimas noites, eu novamente havia sonhado com cemitérios. E nos repetidos sonhos eu sempre enxergava um cemitério de longe, numa colina, cheio de árvores e túmulos ao redor. Mas na noite anterior, eu havia estado no interior de um deles, havia andado por entre os corredores e pelos túmulos. Mas eu também havia parado em frente a um especial, devidamente cuidado e limpo, com a estátua da Virgem segurando o menino Jesus. E bem na frente, a foto de uma jovem mulher, em um daqueles porta-retratos ovais, próprios para fotografias de túmulos. Mas o que mais achei estranho foi ter ouvido a mesma voz no sonho:
– Salve o bebê...
Embora eu nem tivesse comentado com Nícolas, aquilo tudo não saia da minha cabeça. E depois de ele ter saído para trabalhar, um sentimento estranho passou a me incomodar tanto, que tive que deixar minha casa. Coloquei meu bebê no carrinho e saímos em direção ao cemitério do centro. Embora ele não ficasse em nenhuma colina, entrei e comecei a andar por ele. Nada semelhante ao sonho, nem qualquer coisa me chamava a atenção. Foi então que me lembrei de haver outro cemitério, mais antigo, do outro lado da cidade. Como a estação de metrô ficava próxima, fui em sua direção. O bebê estava tranquilo e bem calminho. Em menos de trinta minutos estávamos no segundo cemitério. Como o portão principal estava em reforma, o servente indicou outra entrada, em uma das laterais. Devo estar louca, pensei ao subir a ladeira íngreme com o carrinho de bebê. Mas ao chegar em cima, pude ter uma visão privilegiada do cemitério e, assim como em meu sonho, vi árvores e túmulos. E novamente fui tomada por um arrepio. Assim que passei pelo portão, uma sensação de paz e tranquilidade absorveu minha ansiedade. Passei a olhar cada túmulo, cada lápide, procurando algo que eu nem mesmo sabia o que era, mas continuei.
As horas se passaram sem que percebesse. O bebê acordou meio irritado, com fome. Entrei numa pequena capela, pela qual já havia passado umas três vezes, sentei num velho banco de madeira e, segurando-o no colo, dei-lhe uma mamadeira que havia trazido. Após alimentá-lo, ele adormeceu. E sentada, olhando para uma cruz com dezenas de velas acesas ao seu redor, disse a mim mesma:
– Estou completamente maluca! O que estou fazendo aqui?
Então recoloquei o bebê no carrinho e fui em direção à saída, mas antes de atingir o portão, uma voz suave, trazida com a leve e fria brisa que tocava minha pele, sussurrou meu nome:
– Isabela...
De novo um arrepio. Virei-me em direção à voz que me chamava. Não havia ninguém. Não reconheci o corredor. Com certeza não havia passado por aquela ala. Meu coração batia mais forte. Estaria eu desenvolvendo algum distúrbio psicológico? Pensei. Havia lido em algum lugar, quando estava grávida, que algumas mulheres podem desenvolver certos distúrbios após a gravidez. Mas estaria isso acontecendo comigo?
– Só há um jeito de descobrir! – disse, empurrando o carrinho em direção ao corredor.
Após caminhar por alguns minutos, olhando as fotografias daqueles túmulos, observei mais adiante uma mulher de vestido branco, com um véu também branco lhe cobrindo a cabeça e a face. Podia escutar um choro contido. Aproximei-me dela...
– Com licença, você está bem? – Interrompi, ao mesmo tempo em que dirigia o olhar para a foto. Fui tomada por um espanto sombrio ao reconhecê-la de meus sonhos. Finalmente, minha busca passou a fazer algum sentido, ainda que eu não compreendesse o que estava acontecendo.
– Eu perdi minha filha – ela disse, cabisbaixa e enxugando suas lágrimas.
– Sinto muito. Ela era uma jovem muito bonita.
A mulher permaneceu em silêncio.
– Perdoe-me – continuei –, mas como aconteceu?
– Nós estávamos sozinhas em casa. Meu marido saíra há vinte minutos para o trabalho, quando a campainha tocou. Eu corri para abrir a porta, achando que Ronaldo havia esquecido algo, mas fui surpreendida por dois homens armados. Não me disseram nada, apenas entraram, fecharam a porta e começaram a me agredir. Batiam tão forte, que na primeira agressão caí e não me levantei mais. Rasgaram minha roupa e me violentaram de todas as maneiras. Caída, ferida e indefesa, só pensava em proteger minha filha. Foi então que um deles me deixou e subiu as escadas. O outro foi logo atrás. Reviraram tudo em busca de dinheiro e joias, mas nada encontraram a não ser meu tesouro mais valioso...
A mulher, em pranto, estendeu as mãos diante do túmulo, revelando uma fotografia de uma garotinha, que deveria ter uns dois anos. Eu, surpresa e espantada, voltei o olhar novamente para o porta-retratos e para a misteriosa mulher. Então ela levantou a cabeça, retirando o véu, suavemente... Era a própria mulher do túmulo...
– Não deixe que matem seu bebê – ela disse.
– Mas por quê? O que está havendo?
Ela se virou e começou a andar, desmaterializando-se diante de meus olhos. Mas antes de desaparecer, completou:
– As mesmas pessoas que mataram a mim e à minha filha, agora estão em sua casa... Não volte agora.
Ainda espantada com tudo aquilo, permaneci imóvel por alguns instantes, até que um pensamento me ocorreu.
– Nícolas! – gritei apavorada. – Ele ia voltar mais cedo para casa...
Peguei o bebê no colo e saí correndo, deixando o carrinho para trás. Não conseguia conter as lágrimas. Ia voltar de metrô quando avistei um táxi. Gritei, desesperadamente para que ele parasse. Ao me ver daquele jeito, o motorista queria me levar para uma delegacia de polícia, mas implorei para que ele fosse direto para minha casa. Foi o retorno mais longo que havia feito. Ao chegar, havia polícia para todo lado, com aquelas luzes vermelhas em suas viaturas. Entrei em pânico. Abri a porta do carro e saí correndo e gritando:
– Nícolas! Nícolas!
Uma vizinha e amiga veio em minha direção. Não disse nada a ela. Apenas lhe entreguei o bebê e continuei a correr em direção a minha casa, mas os policiais me barraram e me disseram que eu não poderia entrar, pois a casa estava destruída por um intenso tiroteio e havia três corpos lá dentro. Depois de ouvir aquilo, desmoronei. Tremendo, ajoelhei-me no chão, mordendo os lábios e arrastando as unhas no asfalto. Meus dedos se feriam, mas eu nada sentia. Assim como as pessoas me observavam, sem que eu percebesse qualquer um ao meu redor.
Um gentil policial me ergueu para que eu não me ferisse mais, consolando-me em seus braços. Foi então que ouvi uma voz gritando meu nome e quando olhei, Nícolas já se encontrava de braços abertos.
Foi o abraço mais apertado que havia lhe dado, até aquele momento.
– Meu amor, Nícolas... Achei que tivesse morri...
– Não! – interrompeu ele. – Estou aqui. Estou bem. Achei que você estivesse lá dentro. O que houve? Onde estava?
– É uma longa história.
– Mas e você? Fiquei preocupada. Você disse que voltaria mais cedo do trabalho e...
– E eu nem trabalhei hoje.
– Como assim?
– Você se lembra quando bati a cabeça na parede?
– Claro – esbocei um pequeno sorriso. – Como eu poderia me esquecer? Eu fui a causadora.
– Bem... Pois essa batida me incomodou a manhã toda. Como não consegui trabalhar por causa da dor, pedi uma dispensa e fui ao hospital. Após quatro horas, entre consultas e exames, fui mandado para casa para descansar e tomar analgésicos.
Minha amiga, muito assustada, aproximou-se para me entregar o bebê e nos explicou que ela havia presenciado toda a ação policial e que aqueles bandidos eram procurados há mais de seis anos, por terem violentando e matado uma mulher e sua filha naquele mesmo bairro. Ainda havia boatos que quando a mesma mulher foi encontrada, antes de morrer, ela se vingaria e os faria pagar por tudo o que fizeram.
Após saber disso, abracei Nícolas e o bebê. Estava feliz por estarmos vivos e, é claro, por eu ter a certeza de não sofrer de nenhuma insanidade mental. Mas deixei que escapassem algumas lágrimas, por saber do sofrimento que passou aquela mulher. Serei eternamente grata por sua generosidade em salvar minha família. Que ela e sua filha, agora, possam descansar em paz na eternidade...

 

   
Conto publicado no livro "Seleta de Contos de Grandes Autores Brasileiros"- Edição Especial - Julho de 2015