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José Luiz da Luz
Ponta Grossa / PR

 

De passagem

 
  No passado as viagens eram difíceis, demorava-se muito tempo para percorrer poucos quilômetros seguindo a pé, a cavalo ou carroça, tendo muitas vezes que contar com a sorte para achar água e um local para repouso. Mas, nos antigos sertões do Ipiranga não era assim, a hospitalidade era marcante, todos tinham prazer em oferecer o melhor que podiam: um canto da casa, um cômodo nos paióis ou nas cabanas.
          Embora cansados, por aqueles caminhos os viajantes eram alegres, porém num final de tarde apareceu um homem velho visivelmente apavorado, pois levava uma mala cheia de suas riquezas. Havia trabalhado tanto e toda sua riqueza estava ali, resumida numa mala que protegia sobre o peito, pois sabia que corria o risco das traças comerem, ou de um ladrão roubar.
          Escolheu a cabana mais pobre por se sentir mais seguro, desceu do cavalo e foi recebido por um solitário caboclo. Ao entrar se impressionou com a intensa felicidade do humilde homem, que lhe contava causos regados a deliciosos risos. O viajante não entendia qual o motivo de tanta felicidade, por que tantas bem aventuranças numa cabana paupérrima.
          — Onde estão tuas riquezas? — perguntou o viajante.
          — No meu espírito — respondeu o caboclo. — E as tuas?
          O velho apertou a mala sobre o peito e suspirou envergonhado, entendeu que nem toda sua riqueza não valia um só sorriso de felicidade do caboclo, ainda assim, não se sentia capaz de tirar do bolso uma só moeda que valesse um pão para aliviar a fome de alguém. Após se acomodarem o caboclo percebeu o apego exagerado com sua mala, e pensou: “como ele é pobre! Vou ter que lhe preparar uma peça.” Imediatamente tratou de preparar o jantar:
          — Certa vez provei um alimento mágico — disse o caboclo. — Foi temperado com ingredientes especiais, depois que me alimentei nunca mais senti fome. Mas, como custa muito, hoje farei apenas uma sopa de batatas com verduras.
          O velho da mala se encantou. Mesmo que fosse um feiticeiro, não importava, talvez desse toda sua riqueza em troca do segredo, pois logo juntaria outra fortuna apenas guardando o dinheiro da alimentação. Além disso, alimentaria uma só vez os animais e cresceriam sem custo, a riqueza era certa.
          — Você conhece os ingredientes? — perguntou com o rosto suado de ansiedade.
          — Sim — respondeu o caboclo. — Sua face está descorada, parece que está com sede.
         O velho da mala pegou ligeiro a caneca levando à boca, num desvario transbordou metade da água pelas bordas molhando o pescoço e o peito.
          — Também eu não sinto mais sede — falou o caboclo atento às suas reações. Observando que ainda estava pálido, concluiu: “meu plano está dando certo.”
          — Que água é essa? — o velho perguntou tossindo pela água na garganta.
          — Há uma fonte escondida que jamais seca, não são simples águas porque foram preparadas num complexo ritual de luz.
          O homem que estava de passagem passou por tantos entraves, ainda que se considerasse experiente, não se achava esperto, procurou serenar a excitação para raciocinar: “rituais e ingredientes mágicos: ou ele é um autêntico feiticeiro, ou um impostor que tentará me vender fórmulas falsas.”
          Na hora do jantar o visitante observou que a panela estava cheia, demais para uma só pessoa, visto que o dono da cabana alegou que não sentia fone nem sede. Cuidadosamente a mesa foi arrumada, após uma oração o caboclo convidou-o para se servir.
          O visitante encheu o prato e convulso de fome se alimentava, para sua decepção sentou-se à sua frente o caboclo com um prato de sopa se deleitando, depois tomou água fresca do posso. “É um impostor!” pensou o visitante. Como estava grato não falou nada, afinal, apenas estava de passagem, seguiria de manhã e tudo seria esquecido.
         - A sopa estava deliciosa - o caboclo comentou. - Nunca janto tão tarde, dizem que a comida é mais gostosa quando a gente está com fome.
          “Algo está errado” pensou o homem da mala. Tentou, mas não resistiu e perguntou:
          - Acaso não disse que não tinha fome nem sede? Por que comeu e bebeu?
          O caboclo silenciou enquanto limpava a mesa. Por sua vez o visitante expressava certa ironia num riso contido, estava certo de que conseguiu desmoralizá-lo. Era o que o caboclo queria, esperou que o visitante elevasse seu ego para então fazer uma imponente pergunta:
          - Onde está sua fome? E sua sede, onde está?
          - Não sinto nada, jantei e bebi há pouco tempo — respondeu o velho.
          - Mas voltarão e terá que comer e beber de novo. A fome e a sede causam uma das maiores aflições para o corpo, porém a mais terrível das dores é a fome e a sede do espírito. Quando você me viu comer e beber é porque apenas meu corpo precisa, porém desde que comi do pão e bebi da água da vida, meu espírito nunca mais teve fone nem sede. Um espírito saciado vê a luz em todos os lugares.
          O homem da mala apenas disse boa-noite e se deitou.
          De manhã, quando o caboclo acordou estava só, o visitante tinha partido sem esperar o café e sem se despedir. Estranhamente deixou sua mala e uma carta em cima dela. Quando a mala foi aberta havia apenas papéis queimados. Em seguida o caboclo abriu a carta e leu:
          “Agradeço a hospitalidade, agradeço também suas palavras de luz. Passei a noite pensando sobre minha riqueza e chorei muito, por não ter coragem de falar resolvi escrever. A riqueza que eu guardava na mala era a minha vida, tudo num diário de papel: estavam registrados os meus pecados, meus sonhos, desejos ilícitos, revoltas, invejas, meus bens roubados, lágrimas provocadas, planejamentos de riqueza a qualquer custo... Queimei todas as páginas como quem quer apagar uma vida de pecado, comprarei um diário novo cujas páginas em branco serão destinadas a uma vida de luz, sem fome nem sede, pois descobri o pão e a água da vida. Adeus”.

        

   
Conto publicado no livro "Seleta de Contos de Grandes Autores Brasileiros"- Edição Especial - Julho de 2015