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Raphael Miguel
Botucatu / SP

 

O terceiro dia

 
Sensação de que nada do que foi voltará a ser como antes. Aquele tempo perdido. Sonhos esquecidos e despedaçados. Esperança frustrada. Cada contato com nossa história, o passado, tudo foi apagado. As únicas lembranças estão em livros, registros muito antigos que se desintegram como areia.
Alguns gostam de imaginar como seria ter presenciado o auge da existência humana. Vivido em épocas mais gloriosas. Mas esse exercício me parece uma tentativa fracassada de fugir da realidade. A triste e insuportável realidade.
Não posso me permitir divagar do mesmo modo que estes sonhadores. Minha posição é mais difícil, sou uma espécie de espelho, um líder, não cabe a mim sonhar, mas realizar. Verdade seja dita, quando vejo as duas luas no céu vermelho e escuro, gosto de exercitar minha mente e me perguntar “e se”, mas eles não podem saber desta minha fraqueza. Preciso me impor e mostrar o quanto sou “durão”.
Uma vez, um velho sábio me disse que a maioria dos humanos possui memória seletiva. Que gostamos de nos lembrar apenas dos momentos mais convenientes, esquecendo de forma quase subconsciente as tristezas e desgraças, as quais são enxergadas como um borrão. Isso é bobagem.
Pouca ou nenhuma memória agradável me vem à mente quando tento imaginar o pretérito. As lembranças mais vívidas que me atormentam me remetem a dias difíceis. Pudera. Era uma criança quando a desgraça recaiu sobre nós. Aquilo que chamaram de “o primeiro dia”.
Depois de tanto tempo, os poucos de nós que restaram ainda não chegaram a um consenso sobre o que aconteceu verdadeiramente. Também, isso pouco importa. O que realmente interessa é que o “primeiro dia” foi o início do fim.
Com minha família, eu vivia em uma grande cidade, aquilo que costumávamos chamar de capital. Naqueles tempos, havia um alvoroço, uma boataria de que o mundo caminhava para seus dias finais. Por ser apenas um petiz, eu não dava muita importância para aquilo que parecia ser a maior preocupação dos adultos.
Tudo aconteceu de um momento para o outro. Quando nos demos conta, o chão começou a tremer. Todos sentiram medo. Os prédios e construções balançavam ao sabor do vento e desmoronavam em pedaços. Tentando fugir do pior, buscávamos socorro nas ruas, mas nenhum alento encontrávamos. Bolas de fogo eram arremessadas na direção das pessoas. Raios, trovões, relâmpagos. Era como se o céu começasse a desabar sobre nós.   
Poucos resistiram ao primeiro dia. Em minha ingenuidade pueril, fiquei bastante chocado com os corpos mutilados, esmagados, queimados, eletrocutados ao meu redor. Da minha doce família, sobrevivi ao lado de meu pai, que se sempre me instruiu a não demonstrar medo.
Perdidos em meio a escombros, começamos a procurar por mais sobreviventes. Me lembro de passarmos dias nos abastecendo de comida que havia sido abandonada no chão e sem encontrar sequer uma outra alma viva em nosso percurso.Não sei ao certo quanto tempo passamos sozinhos, mas foi tempo demais.
Certo dia, eu e meu pai caímos em uma armadilha enquanto andávamos por um lugar desértico que já havia sido uma floresta em tempos atrás. Para nossa sorte, os captores não eram inimigos e, para nossa surpresa, eram humanos. Eram os primeiros que víamos desde o primeiro dia.
Nos juntamos àquele grupo e começamos a sobreviver em conjunto. Chegamos a construir uma espécie de aldeia e desenvolvemos uma comunidade. Toda tecnologia que um dia tivemos, desapareceu, mas conseguimos nos virar com os poucos recursos que improvisamos. Pouco tempo depois, a pele de meu pai começou a se desintegrar e ele morreu.
Mas eu tinha aquilo que chamei de “meu povo”. Com o tempo, me tornei o líder da comunidade. Meu trabalho consistia em liderar os amigos para que desentendimentos corriqueiros não ameaçassem a convivência. Uma ou outra preocupação cotidiana, mas nada que exigisse uma postura tão rígida de minha parte. Isso já faz muito tempo.
Aquele foi um período de relativa paz e harmonia, mas acabou.
Os eventos do primeiro dia mudaram drasticamente nosso modo de viver e nos fez sobreviventes. Mas aquilo que chamamos de “segundo dia” foi ainda mais extremo.
Enormes objetos voadores foram vistos nos céus e em pouco tempo começaram a drenar toda água da região onde eu e meu povo vivíamos. Sem termos escapatória e não sabendo exatamente o que estava acontecendo, começamos a vagar novamente.
Por onde passávamos, testemunhávamos as consequências da falta de água. Possivelmente, drenaram a água de toda parte, pouco sobrou. Animais e vegetais estavam morrendo, a terra se tornou árida demais.
O céu também dava mostras da mudança que passamos. Antes de uma coloração esplêndida, variando do límpido azul até o sutil anil, agora o céu é de um tom vermelho carregado, se tornando escuro durante a noite.
A lua prateada que eu conheci quando era criança foi destruída durante os eventos que sucederam o “segundo dia” e há duas bolas artificiais flutuando sobre nossas cabeças. Apesar de não serem nosso satélite natural, também as batizamos de luas.
Já há algum tempo estou cansado de tudo isso. Decidi que nossos inimigos são aqueles que sobrevoam os céus. Foram eles que nos tiraram o pouco que o primeiro dia nos deixou. Eles nos tiraram a humanidade.
Reuni um grupo de homens sábios e lhes instruí a acumularem todo conhecimento perdido da humanidade. Usando uma tecnologia antiga, pretendo me atirar aos céus e atacar nossos inimigos de dentro para fora. Que este seja meu último sonho, meu último grande feito. .
Me preparo para levantar vôo na máquina que irá comandar o ataque aos nossos inimigos. Antes de partir, tiro do bolso um pedaço de papel com alguns cálculos que fiz para saber a data de hoje.
Após o primeiro dia, passamos a contar o tempo de forma diferente. Antes, contávamos o tempo como antes e depois de Cristo, mas isso já não importa mais, o que importa é que hoje é o terceiro dia.  

 

   
Conto publicado no livro "Seleta de Contos de Grandes Autores Brasileiros"- Edição Especial - Julho de 2015