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Neri França Fornari Bocchese
Pato Branco / PR

 

O convívio pelas estradas

 
Depois dos cumprimentos ainda no pátio, os frades visitantes eram convidados a entrar no rancho, que passava, a partir daquele momento, a ser deles. O próprio frade precisava cuidar da montaria. Quase sempre um era o responsável pelo outro. Muitas vezes aconteceu de a montaria conduzir o dono ferido ou muito doente até a residência, ou de empacar durante a caminhada e se comprovar que depois da curva havia um perigo eminente, um animal bravo, peçonhento ou uma emboscada.
Após as caminhadas, quando o sacerdote voltava para o rancho, esperava-o um café gostoso, um chimarrão recém feito, ou ainda um bom crioulo (cigarro feito com palha de milho e fumo em corda bem picado). Como o caboclo era muito amável, dava liberdade de escolha ao visitante, podia escolher com o que se servir.
Trocar de roupa e tomar banho não era como atualmente, pois, ninguém trocava de roupa durante o dia, às vezes usavam as mesmas peças por diversos dias ou semanas. Na roupa ficava misturado o cheiro do corpo, da fumaça, do suor, da chuva. Não era por falta de capricho, mas, porque cada vivente tinha no máximo três mudas, a terceira era a domingueira, essa ficava guardada para as visitas do padre, festas de casamento, bailes ou para alguma viagem de emergência. Os pequenos não usavam calças, onde estavam faziam as suas necessidades. As meninas, mesmo as bem pequenas, sem as calcinhas, usavam um vestido mais comprido para serem resguardadas. As mulheres não andavam remendadas como os homens, pois o senso de beleza feminina fazia parte da cultura do caboclo.
 Essas viagens feitas pelos missionários duravam em média quinze dias; as mais distantes, setenta. Era preciso estar sempre prevenido nesse tempo longo de sacrifício, sem o convívio da fraternidade sacerdotal. Ter fé e coragem para ser um pregador, Testemunha do Evangelho de Jesus Cristo, levar a Palavra e a Esperança, em setenta dias de peregrinação, com certeza, acontecia com a vocação sólida do franciscano alegre, sempre a espalhar a Verdadeira Alegria do Pai Francisco.
No inverno, levavam junto com a bagagem uma coberta grossa, blusas e roupas quentes, pois mesmo não sendo o inverno europeu, fazia bastante frio. Por causa dos caminhos complicados a serem percorridos e das longas distâncias, as chegadas nos ranchos dos caboclos eram quase sempre na boca da noite, no momento solene do final do dia, quando as luzes despediam-se no horizonte. Nesse momento, era necessário que a primeira conversa fosse aconchegante e os cumprimentos despertassem um bom sinal de entrosamento. Como a noite caía rápido, não havia mais tempo para o banho e a lavagem da roupa suja. Essa era à hora da melancolia, da saudade da casa paroquial, da cela pobre e aconchegante. Era um tormento quando não se conseguia uma acomodação mais aprazível. Por isso, a cada oito ou dez dias, fazia-se uma parada maior em alguma casa de melhores condições econômicas, mais sossegada, mais limpa, com lugar próprio para o banho e lavagem de roupas.
Geralmente os banhos eram nas bicas que traziam a água direta do riacho. Apenas algumas tábuas sobrepostas deixavam o local protegido dos olhares curiosos. Curiosidade maior quando o padre, como bom cristão, estava tomando banho. Alguns acreditavam que o homem-padre era diferente dos demais, o corpo possuía outras conformações, faltava ou sobrava alguma coisa. Era muito interessante verificar pessoalmente. Em especial, os mais jovens, não podiam perder essa oportunidade de espiar de um lugar estratégico e confirmar os ditos populares. Outras vezes, apenas uma taquara mais grossa um pouco, servia de bica e levava a água das nascentes, até um local apropriado para o banho Tomar banho no rio entre as caminhadas de uma localidade à outra, foi uma solução muito praticada. Um banho gostoso, necessário para rejuvenescer depois da longa jornada. A água, preciosa e casta, era sempre muito límpida, pois os rios ainda não estavam poluídos pela ação nada franciscana dos homens.
Se o banho fosse num riacho próximo de alguma casa, era preciso verificar se não havia olhares curiosos para ver um padre nu, pois esse espetáculo não acontecia todos os dias e não podia passar despercebido. Nessas viagens o missionário não podia esquecer-se de levar consigo a toalha de banho, o sabonete, a escova de dente e o pente, objetos não disponíveis nas casas visitadas e nem material para ser emprestado.
A carne de animais domésticos era um alimento raro, não tinha como ser conservada. A carne de caça encontrava-se com facilidade, mas nem sempre agradava ao paladar europeu dos frades. O que não faltava era o torresmo no feijão. O porco criado à solta fornecia carne, banha para o alimento e o combustível para o lampião.
Em alguns lugares por onde andaram, os missionários é que fizeram o intercâmbio de sementes, das mudas, introduziram  verduras, legumes,  frutas. O leite e, derivados eram abundantes. Guardado nas guampas penduradas na parede para se conservar limpo, fresco, depois de coalhado era servido com biju, adoçado com o açúcar mascavo ou mel. O missionário, também um agente social, após se acostumar a comer frutas do mato, abundantes, variadas, próprias de cada estação, melhorava o cardápio,  ficava  mais variado, bem mais nutritivo.
Nas casas caboclas, para agradar, receber bem os visitantes, quase sempre era preparada uma suculenta galinha para o padre, o último a chegar para o almoço, quase ao anoitecer, pois precisa atender a todos com atenção. Os compadres iam chegando primeiro, não resistiam ao petisco. O cheiro do bom tempero despertava o desejo da refeição. Nem os pobres ossos sobravam, pois a cachorrada era enorme. Ali mesmo na cozinha, ao redor do fogo de chão, os caboclos iam comendo, lambendo os dedos e, após o tutano ter sido aproveitado, jogando para os cães famintos, os ossos reluzentes.
Isso não acontecia por mesquinhez. A miséria era grande, as enchentes, as secas, a falta de comércio, tornava tudo complicado. Na época do pinhão é que se alimentavam um pouco melhor. Pinhão, nutritivo e saboroso, sapecado ou cozido na panela de ferro. Pinhão, assado na chapa e lambuzado no mel, lembrava a castanha servida na Europa, era um agrado para os sacerdotes. O torresmo moído junto com o pinhão socado no pilão, também agradou ao gosto, podia ser passado na broa ou comido como um prato especial.
A iluminação feita com um candeeiro de querosene. Em tempo de carestia queimava-se graxa de animal ou sebo. A banha de porco, muito disputada, só era usada quando havia muita necessidade de luz noturna. Havia também o cigarro ou o palheiro, aceso direto num tição ou mesmo no brasido, numa arte feita com maestria para não chamuscar os dedos.
A mulher, com uma vida bem mais recatada do que a do homem, era quem mais pitava. O cigarro de palha era comunitário, passava de boca em boca, uma pitada para cada comadre. Só eram convidados para se sentar ao redor do fogo, os amigos, aos quais eram oferecidos o palheiro e o chimarrão.
Naquele tempo, havia também os seus rituais. Para os caboclos, um sinal de boas vindas, de grande agrado social, o visitante passava a ser de casa.. E assim, mais uma vez na história do homem, o fogo desempenhou um papel social. . 

 

   
Conto publicado no livro "Seleta de Contos de Grandes Autores Brasileiros"- Edição Especial - Julho de 2015