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Francisco Ferreira
Conceição do Mato Dentro / MG

 

Carta de despedida

 
O poeta suicida que não se matou, no auge de sua depressão e abandono, deixou esta carta na caixa de correios de sua amada que o trocou por “um poodle cheio da grana”, na tentativa de juntar os seus cacos.

Se me permitis, me apresento:
eu, paradoxo de mim.
Se não me caibo em mim
de tanto desejo,
tampouco basto
para toda apatia.

Se a apatia me move,
no desejo, me aquieto.
Sonambulo na letargia,
mas a tensão me arrefece.

Transfiguro-me, transfujo, transgênico-me.
Advirto-vos, porém:
sou íntegro em meus incontáveis fragmentos.

 

Seria fantástico que hoje, quando tudo parece estar na contramão em minha vida, eu tivesse alguém... Qualquer pessoa, um ser humano qualquer...
Se eu tivesse alguém que me perguntasse:
           
- Você está triste?

Mas que não fosse preciso explicar ou explicitar as minhas dores, que eu não tivesse, por obrigação, de abrir baús, velhas gavetas e desacorrentar antigos fantasmas, há muito, apodrecendo emparedados na sala de estar de minha mente confusa, que não tivesse de despir-me e expor publicamente a nudez horrenda de minha alma...
           
Já que carrego no ombro, como Atlas,
o peso de um mundo de tradições falidas
e fálicas traições.
Harpias em cada esquina me lançam
o veneno de seus sexos
negros e congelados.
Medonhos dedos tortos
da mesquinha e volúvel deusa
apontam-me o peito e proclamam:
-Culpado! Culpado! Culpado!

 

Que eu tivesse alguém que pudesse ou quisesse me compreender, a partir de meus atos tidos como desvairados, sem me analisar “os grilos” á luz de suas próprias conveniências ou das ridículas e hipócritas convenções sociais.
           
Pois que já não há apelação neste tribunal
onde juíza, jurada e carrasco
são a Consciência.
           
Seria extraordinário...
Que eu tivesse alguém – qualquer pessoa – que me aceitasse como sou: fraco, onde sou fraco; forte, onde sou forte; integro ou despedaçado; e que me proporcionasse algum momento de alegria e paz de espírito. Me desse motivos para sorrir, sem exigir-me, em troca, a alma ou o carro do ano, o tapete persa, o diamante de n quilates....

Esse verme-fálico ereto inerte.
Se meu sal lhe trava e seca-lhe a boca
sou, porém insipidamente tri destilado.
           

Se eu tivesse alguém - qualquer pessoa - que procurasse encontrar quaisquer boas virtudes, tão poucas em mim e não ficasse evidenciando mais ainda os meus vícios (tantos) ou não inventasse novos, para deixar-me ainda mais deprimido...

Esta quixotesca figura
a bater-me contra castelos de lodo
no lamaçal do ultraje.
Cada vez mais submerso
na areia-movediça da fama
sou cão-danado.
 “-Todos a ele!”
Trituram-me o nome
em imaginários moinhos sociais.
O meu caráter reduzem a pó
e cai-me a sólida persona.
Máscaras...
Justamente a mim que
me bastam, a vaia íntima
e a náusea de conviver comigo e que me consomem. Esgotam.

Se eu tivesse alguém - qualquer pessoa – que não me quisesse como um simples robô, autômato, um deus infalível; mas que me tomasse unicamente como humano. Principalmente, um ser humano que está atravessando um momento difícil e absurdamente adverso...

Não há ancoradouro neste cais
nem tangente para se sair
onde “navegar é preciso”
ainda que no limbo,
o mar seja de sangue
e o porto inseguro.

Se eu tivesse alguém nesse momento - qualquer pessoa – que antes de ganhar o meu, quisesse me dar “colo”; que antes de em mim, quisesse me apoiar; que antes de receber, me desse sustentação...

Neste mundo de horror
meus sustentáculos
são, o amor e seus tentáculos.

Já que não bastasse
que se batesse
contra toda parede branca
que havia Avezinha Tonta,
bateu asas
e deixou sozinho,
no ninho,
meu coração de passarinho.

Abstrata,
teceu em mim,
cicatrizes concretas

Se eu tivesse alguém –qualquer pessoa – que no deserto que está se tornando a minha vida, fosse uma única flor, ainda que pequenina, e não apenas só mais um dos milhares de espinhos... Seria fantástico que eu tivesse alguém, qualquer pessoa...

Vós!

A vossa ausência é cega,
tartamudeia.
Tateia tal aranha na teia.

Não penso no futuro, tão obscuro,
pois dele, apenas uma certeza,
a da morte e dela não há o que pensar.
Somente esperar na certeza de que virá
quando menos se esperar.
Pensar no futuro é morrer prematuro.
Há algo mais belo do que o próprio egoísmo?
Morrer como Narciso
preso de seu próprio fascínio?

Vou morrer hoje, por sua causa, vossa... vossa... vossa...

Em vossa ausência árida
meus olhos fazem despencar
lágrimas torrenciais.

 

Foi para casa, se embebedou e acordou, na manhã seguinte, numa tremenda ressaca e com o frasco de remédios para insônia aberto e com os comprimidos espalhados pelo tapete da sala. Juntou os cacos de sua dignidade e amor próprio e foi trabalhar.
Afinal, com ela ou sem ela, a vida continua...

 

 

   
Conto publicado no livro "Seleta de Contos de Grandes Autores Brasileiros"- Edição Especial - Julho de 2015