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Manoel Neto de Sousa
Salitre / CE

 

Oitenta vidas

A minha avó, sentada à calçada de seu casebre, onde a natureza desenhara há muito tempo uma paisagem murcha, cogita sobre os tempos a que sobrevivera. Tempos duros, meus Deus, aos quais passara. Sabe ela. E, em cogitação, tem numa das mãos um taco de pau, servindo este para tanger as galinhas que, esfomeadas, parecem lhe pedir um caroço de milho. Olha para a estrada a sua frente, que vai dar noutros rumos, com os olhos que já pouco enxergam. Olhos que a velhice deformou, que veem meros vultos, se aquilo que mirarem não estiver perto de si. E no olhar a estrada empoeirada adiante, talvez esperando que uma alma qualquer apareça, tem uma lembrança: completa, no exato dia,oitenta anos de idade. E, nem muitos segundos se passam disso, ela tem uma indução pronta, que os fatos vividos hão, por si sozinhos, de comprovar: foram não oitenta anos, mas oitenta vidas, como se a cada ano passado, desde que nascera, tivesse ganhado outra vez a vida, por difícil que lhe fora. Sim, a vida não brincara com ela. Ou se em algum instante tivera felicidade deverá ter sido quando, em meninice, vivia com os velhos seus pais, na abastança da vida rural. Tempo alegre e ímpar que a minha pobre avó viveu. Até traz à mente as poucas e boas que aprontava com as mulheres trabalhadoras de seu pai no aviamento. Numa oportunidade colocou pólvora no cachimbo da Sinhá Joana, que assistira ao bicho explodir e quase a morrer de susto. Mas o pai, homem de moral, deu-lhe umas bordoadas que não pudera esquecer. Todas as surras ministradas pelo pai haviam lhe ensinado tanto a ser uma mulher de caráter. Em menina aprontara demais, porém pagou por todas as maledicências cometidas. O pai, homem de barriga cheia, ensinara que em casa podia faltar qualquer coisa, menos o que comer. Nas farinhadas, via-o matar gordos bodes em tempo de seca para alimentar trabalhadores exaustos de fome e de fadiga. Como o pai gostava de fartar aos outros. Como era bom, meu Deus, o pai da minha avó. E a mãe também. Em dia de novena a São Sebastião, sequilhos e bolo de puba deviam estar disponíveis às bocas dos visitantes. “Coloquem na mesa o que dê para encher a pança e lamber os beiços”, dizia a senhora. Sobrava até para que meninos malinos, terminada a reza, assaltassem da despensa, enchendo as bochechas rechonchudas e os bolsos com o que havia de melhor. Essas recordações animam a minha avó. Outras não a contentam tanto, qual as do tempo em que vivera casada. “Você está azeda, minha filha, querer casar com um fulano desses? Crie juízo, moça! Não, não tem minha permissão para se acabar assim!”. Essas palavras do pai, pronunciadas quando dissera a ele que queria casar, guardaram-se para sempre no seu cérebro. O homem não prestava, justificava o velho, assim, nada de consentir. “Mas eu caso, dê no que der!”, gritara às escondidas. Fugiu com o homem, acoitada por conhecidos, e a partir daí não teve mais sossego. Os maus-tratos iniciaram-se cedo. Levara bofetadas e fora obrigada a ralhar na roça. Depois, vira o marido, homem rigoroso e sovina, expulsar os filhos de casa, como se põe a um cachorro para fora. Tivera que viajar em cima de caminhões, mendigando avida com os filhos expostos a perigos, e por não uma única vez. A minha avó deve se perguntar que homem era aquele que escolhera para si, que queria matar de fome à própria prole. No fundo, divaga, aquele indivíduo não passava de um mesquinho, obrigando-a inclusive a endurecer também, a se amargurar graças às regras maquiavélicas por ele ditadas em casa. Outras maldades realizara. Por que envelhecera, namorava às vagabundas de beira de rua. Ia às proximidades, a outras cidades, agarrar mulheres da vida. “Não lhe quero mais. Vou-me embora. Fique com seus filhos na casa”, foi o que disse ele, ao bater a porta atrás de si e mandar-se para sempre. Minha avó zangou-se por uns dias, uns tempos até. Rogou muitas pragas. Mandou o meu avó ao diabo que o carregue. Mas, quando pôde raciocinar, percebeu que tinha se libertado. A vida começava de novo. Tanto é que, percorridos uns anos, mandara abóboras de presente ao homem, como a dizer que lhe agradecia por ter sumido. Pior é que aquele senhor lhe tirou todas as energias; as alegrias, consumiu a todas, de modo que, ganhando outro rumo, deixara-a carcomida pela idade, imprestável. Os filhos não puderam cuidar dela, salvo um ou dois que permaneceram perto e quiseram dar a pobre algum auxílio. Outros, mesmo não longe, não viam nela mais que uma alma penada. “Não sei como é pode”, ia pensando ela, “a gente pôr uma cria no mundo para ganhar dela não mais que indiferença quando vira gente”. Dos sofrimentos que tivera nada a matava mais depressa que o desamor daqueles a quem deu a vida. E se não morrera quando nova é porque tivera um salvo-conduto que lhe fora útil: aprendera a dar rasgadas e boas gargalhadas. Sim, a minha avó é uma mulher que ri, que ri qual ninguém nesse mundo o sabe fazer. Tem horas que a sua casinha de portão verde desbotado fica preenchida de gente que não quer outra coisa, senão ouvir as imoralidades e piadas que inventa sobre o ex-marido para rir junto a ela. “Pelo menos”, pensa a minha avó, ainda sentada e a luz da tarde quase a se extinguir, “eu tive isso como remédio para disfarçar a dor e deixar mais leve as oitenta vidas de sofrimento”. E tem muita razão, pois infeliz é quem não tem sequer um eufemismo capaz de esmaecer um pouco a dor que se carrega no coração. Exorta em seus pensamentos, nem vê que há muito as galinhas subiram ao poleiro e que já não se via completamente o mundo obscurecido. Espreguiça-se, como se houvera acordado de um sono, e parte para dentro de casa, só depois de dar uma estridente gargalhada. O filho, que assiste à máquina, não pode deixar de pensar que a mãe esteja enlouquecendo, erroneamente. Ela, que dorme cedo, vai deitar-se.


   
Publicado no livro "Xeque-mate" - Contos selecionados - Edição Especial - Novembro de 2014